A nova/velha face da punição escolar

A nova/velha face da punição escolar

Enílvia Rocha Morato Soares – doutoranda em Educação

 

O site do Centro de Referência em Educação Integral publicou, no dia 20/06/2017, entrevista com a professora da Faculdade de Educação da UNICAMP, Áurea Maria Guimarães, autora do livro Vigilância, punição e depredação escolar. Antes de transcrever a publicação do site, assim como a entrevista, teço algumas considerações sobre o tema.

Os comportamentos requeridos socialmente exigem dos indivíduos sujeição a regras e padrões estabelecidos a fim de manter o que se considera uma sociedade ordeira ou organizada. Em outras palavras, manter e reproduzir o atual modelo social requer a adequação de comportamentos a modelos estereotipados a fim de reservar, a cada classe, o lugar que lhe cabe ocupar. Todo esse processo se reveste de democrático se considerada a aparente liberdade que cada pessoa possui de adotar ou não os comportamentos dela esperados. Aparente porque a coação que forja a padronização de condutas se dá, na realidade, por meio de mecanismos que são cruéis, não só pela imposição de uma dada maneira de proceder, mas principalmente pela sutileza dos modos como se apresentam, evitando deixar transparecer suas reais intenções.

Segundo as declarações da autora Áurea Maria Guimarães, esse é um processo que conta com a instituição escola para o êxito de seus propósitos. Na esteira da história das punições aos delitos cometidos pelos “transgressores da ordem social”, os castigos adotados no âmbito da escola, que antes incidiam sobre o corpo físico por meio da palmatória, foram deslocados para a alma, atuando agora “sobre o coração, o intelecto, a vontade e as disposições” (FOUCAULT, 2014, p. 21) dos estudantes.

Mudanças no formato punitivo motivadas pela comoção e, muitas vezes, revolta, diante da exposição da dor física, que parecem pautadas por sentimentos de respeito e humanidade se traduzem, na verdade em mudança de estratégias. Permanece o objetivo final de se homogeneizar os alunos igualando-os a partir de um sistema formal já instalado que se deseja perpetuar.

As pequenas ou não tão pequenas humilhações vivenciadas pelos estudantes ao serem comparados e ou hierarquizados diante de normativas gerais e impostas unilateralmente constituem punições menos perceptíveis visualmente, porém não menos violentas do ponto de vista da tortura que são capazes de produzir. A avaliação informal se mostra, assim, promotora da aceitação e assunção de posturas incompreendidas porque não refletidas, inviabilizando processos educativos formadores de sujeitos conscientes de sua atuação crítica da e na sociedade.

Além dos modelos comportamentais clássicos que precisam/devem ser seguidos pelos estudantes a fim de facilitar sua coexistência pacífica no espaço escolar, a autora alerta para as “regras dos efeitos colaterais”, ou seja, dos desdobramentos da punição sobre os que não cometeram a falta, como forma de lhes exemplificar condutas que precisam/devem ser evitadas. O controle, a disciplina, o adestramento e a docilização de corpos e mentes (FOUCAULT, 2014) estaria, desse modo, alcançando patamares capazes de evitar a propagação de condutas desviantes do “normativo universalizado”.

Os impactos da extensão da punição não se esgotam aí. Áurea Maria Guimarães lembra ainda que a simples ameaça de estender a punição aos não infratores é capaz de conduzi-los à delação que, assim, adquire status de mérito pela contribuição que oferece à retomada da normalidade consensual e acrítica. O sistema de gratificação-sanção que se percebe em situações dessa natureza tende a colocar a avaliação a serviço da compensação ou penalização dos estudantes, dependendo do modo de estes cumprirem o seu ofício (PERRENOUD, 1995), distanciando-a da conquista dos saberes que conferem aos sujeitos a condição de pensar autonomamente.

O exercício do “ofício de aluno” (idem) constitui, assim, uma preparação do cidadão que se insere pacificamente ao meio social, aceitando o que está posto como uma fatalidade contra a qual não se deve lutar, uma vez que opor-se a ela constitui rebeldia passível de punição e exclusão. Os riscos representados por comportamentos que fogem dos padrões considerados normais, porque ameaçam reverter estruturas supostamente consolidadas, induzem ao uso da avaliação escolar como mecanismo de punição daqueles que ousam investir nesse sentido.

A necessidade de uma “escola sem partido” (como se o apartidarismo fosse possível) emerge em função desse receio, uma vez que, apesar das influências do meio social que incidem sobre a escola, colocando-a a serviço de sua reprodução, é inegável o potencial dessa instituição enquanto espaço de luta com vistas a mudanças sociais. A escola enquanto foco de resistência ao (re)alinhamento de condutas que garantem a atual, desigual e injusta organização social foi também lembrada por Áurea Maria Guimarães. Nessa perspectiva, o trabalho escolar deve voltar-se ao cumprimento do compromisso ético e político de ensinar a todos, o que pressupõe avaliar para promover aprendizagens que permitam aos estudantes o livre pensar, independentemente das características naturais e sociais que os individualizam e em consonância com os direitos legais e humanos que os igualam.

Referências

FOCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

PERRENOUD, Philippe. Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Trad. Júlia Ferreira. Porto, Portugal: Porto Editora Ltda, 1995.

 

Passo, agora, ao texto do Centro de Referência em Educação Integral.

“COMO A PUNIÇÃO ESTÁ PRESENTE NAS ESCOLAS DE HOJE?

Centro de Referência em Educação Integral

20/06/2017

Se hoje as escolas não utilizam mais a palmatória, isso não significa, contudo, que os métodos de punição foram todos extintos do sistema educacional. Eles permeiam desde as avaliações com base em notas até o projeto Escola Sem Partido. É o que afirma Áurea Maria Guimarães, professora da Faculdade de Educação da Unicamp.

Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, a autora do livro Vigilância, punição e depredação escolar (Editora Papirus) falou sobre como os mecanismos de punição estão presentes nas escolas atualmente. Confira os principais trechos:

Centro de Referências em Educação Integral: Para começar, como a senhora entende punição?

Áurea Maria Guimarães: A punição é muito mais uma forma de discriminar comportamentos do que castigar. Por meio das penalidades se estabelece um sistema de igualdade formal que leva à homogeneização entre os alunos, mas ao mesmo tempo introduz-se a gradação das diferenças individuais.

Ao discriminar os comportamentos dos indivíduos, a punição passa a diferenciá-los, a hierarquizá-los em termos de uma conformidade a ser seguida. A punição objetiva controlar, qualificar o indivíduo, não interessando o que ele fez, mas o que é, será ou possa vir a ser. Diante da “universalidade do normativo”, só resta aceitar e cumprir as normas, pois questionar ou tentar entender as regras significa colocar-se sob suspeita.

Um outro aspecto a ser analisado é que não se faz uma reflexão, juntamente com os alunos, a respeito dos seus atos. Por exemplo, é muito comum carros de professores serem danificados pelos próprios alunos, então, o que fazer? Descobrir os culpados, exigir que eles paguem os danos e que sejam suspensos por alguns dias? Podemos até concordar com essas punições, mas questões importantes ficam sem resposta: por que esses fatos se repetem, apesar das punições aplicadas? Por que esses carros estão sendo danificados pelos alunos? O que está acontecendo com os alunos, os professores, a escola, com o ambiente onde todos esses elementos estão interagindo?

Diante da “universalidade do normativo”, só resta cumprir as normas, pois questionar ou tentar entender as regras significa colocar-se sob suspeita

Outra observação diz respeito à “regra dos efeitos colaterais”. Segundo Michel Foucault, na aplicação das penas o elemento menos importante é o culpado. A penalidade “deve ter efeitos mais intensos naqueles que não cometeram a falta”.

Em entrevista realizada, em 1982, com alunos de quintas às oitavas séries do antigo Primeiro Grau (hoje dividido entre Fundamental I e Fundamental II) e alunos do Segundo Grau (hoje Ensino Médio), em 15 escolas da cidade de Campinas, pude coletar inúmeros depoimentos, nos quais essa estratégia de provocar “efeitos colaterais” era muito comum.

Por exemplo, “sumiu um tipo de equipamento químico da biblioteca e ‘fulano’ falou que se não aparecer até sexta-feira à noite a escola inteira ia levar suspensão”. A punição incentiva a delação, produz a normalização e a ausência de crítica.

Centro de Referências em Educação Integral: E o que seria a noção de criança “bem educada” e como ela se opõe à noção de desordeiros?

AMG: A criança “bem educada” é a criança que não pergunta, não questiona, não se inquieta. O “bom aluno” é o aluno bem comportado e não necessariamente aquele que tira boas notas. Alunos que até podem tirar boas notas, mas que são questionadores das regras, das normas da instituição são considerados “desordeiros”, “vagabundos”. Dessa forma criam-se indivíduos sujeitos a hábitos, regras, ordens, a autoridades que se exercem continuamente sobre eles.

Alunos que até podem tirar boas notas, mas que são questionadores das regras, das normas da instituição são considerados “desordeiros”

Centro de Referências em Educação Integral: Não tão antigamente, os castigos aos estudantes considerados indisciplinados eram físicos. Hoje, podemos dizer que são psicológicos?

AMG: Os castigos físicos, ainda que em pequena escala, costumam acontecer. Muitos pais até autorizam os professores a “baterem” em seus filhos, uma vez que se sentem impotentes diante da rebeldia deles. De modo geral, os castigos visam rebaixar e degradar, colocando em evidência, distinguindo alunos que possam caracterizar a “desordem”.

A punição faz diferenciações, separando, através de avaliações e de classificações, os “bons” dos “maus” alunos, também chamados de “bagunceiros”, “marginais”, “maconheiros”, “maloqueiros”, “selvagens”, “índios”, “bobos”, “animais” “favelados”.

Centro de Referências em Educação Integral: O sistema de provas e notas nas escolas faz parte da lógica de punição?

AMG: O que predomina nas escolas é o sistema de gratificação-sanção. “Tem festa junina em junho, então, se dá prenda você ganha ponto na nota, ganha letra, entende?”. A penalidade é quantificada de modo a associar notas a mais com bom comportamento e a menos com mau comportamento. Isso não significa que não deva existir um sistema de avaliação nas instituições educativas.

O que estamos querendo mostrar é que o sistema existente não avalia o aprendizado do aluno, ele pune. A escola idealizada para os pobres não está preocupada com um conteúdo a ser transmitido e aprendido, muito menos com o conhecimento a ser adquirido e produzido.

É uma escola que funciona como um “observatório social”, exercendo sobre os alunos e professores um controle regular, que toma como referência não tanto o que se faz, mas o potencial do perigo que se carrega e que pode se manifestar no comportamento observado cotidianamente. Mas, não nos enganemos, essa escola é potente, porque nem todos, felizmente, se transformam em seres passivos, incapazes de se comunicarem, de pensarem.

A reação de alunos e professores contrários à reorganização das escolas no estado de São Paulo, foi uma prova de que professores e alunos defendem a escola pública e querem transformá-la não conforme o apelo mercantilista que subjaz às “boas intenções” da burocracia estatal, mas de modo a garantir que o conhecimento produzido pela humanidade possa ser partilhado com os alunos.

 

Esse conhecimento não é neutro, ele é múltiplo, contraditório, exerce-se em meio a relações de poder. A Física, a Química, a Biologia, a Matemática são consideradas por alguns cientistas como sendo também ciências sociais pois não existem apartadas do nosso cotidiano, das nossas vidas.

Trabalhar esse conhecimento e lutar para que ele esteja ao alcance de todos é o papel do educador. Aí sim, vamos pensar juntos um sistema de avaliação que, ao invés de excluir alunos, os convidem a dialogar, produzir, inventar novas possibilidades de estar na escola, de estar no mundo.

Centro de Referências em Educação Integral: A senhora diz que a lógica liberal prevê que o tempo individual seja sempre empregado em atividades úteis. Como essa concepção está ligada à escola atual?

AMG: Muitos teóricos e pesquisadores da educação, entre eles, Tomaz Tadeu da Silva, Gaudêncio Frigotto, Mariano Enguita, Pablo Gentilli, Luiz Carlos de Freitas, nos alertavam, desde o início dos anos 1990, a respeito de conceitos que passaram a migrar do mundo do trabalho para o campo da educação. Termos como racionalidade, eficiência, produtividade, utilidade, neutralidade, imparcialidade, passaram a ser utilizados indiscriminadamente, como se a sala de aula e o ambiente de uma empresa fossem a mesma coisa.

É muito comum os alunos perguntarem para professores de diferentes áreas do conhecimento “para que serve estudar isso?”. Para uma empresa é fundamental esclarecer a utilidade de seus produtos e assim convencer o consumidor a comprar o que ela está vendendo, ainda que esse convencimento se revista de um golpe de marketing.

E na educação? Também é importante esclarecer ao aluno a utilidade daquele determinado conhecimento, mas, com uma diferença, na escola, não vendemos produtos que precisam se adaptar às demandas do mercado. O conhecimento com o qual trabalhamos não é único, ele se constrói e se transforma em diferentes tempos históricos e lugares.

Não é função do educador “otimizar o tempo”, calcular e maximizar a utilidade dos alunos com atividades que formatem um “eu” produtivo, ou uma identidade adaptada, subordinada à lógica mercantil.

Nosso papel, enquanto educadores, é mostrar aos alunos que os conhecimentos adquiridos na escola podem ser usados como ferramentas que os ajudem a se emancipar e a construir novas relações com o mundo que os cercam.

Que a escola não os transformem em meros executores de tarefas, disciplinados e obedientes aos princípios mercadológicos, mas que além de os preparar científica e tecnicamente para assumirem posições no mundo do mercado, desenvolva neles, como propala Frigotto, todas as dimensões do ser humano e a compreensão de que tudo o que se aprende deve servir em primeiro lugar às pessoas e não à produção.

Hoje tenta-se organizar as escolas como um campo competitivo de provas no qual vencem os “melhores”, ou seja, aqueles alunos que já chegaram com um repertório cultural, econômico e social adquirido muito antes de iniciarem a vida escolar. Para aqueles que chegam sem esse repertório resta-lhes uma educação qualquer e as ocupações de baixa qualificação no mercado.

Centro de Referências em Educação Integral:  De que forma a lógica punitivista se manifesta no Escola Sem Partido?

AMG: Os ideólogos do Escola Sem Partido acreditam que a educação é neutra, mas não é. Quando seu fundador indignou-se com a crítica que um professor de sua filha fez à teoria criacionista ele tomou um partido, partido esse contrário àqueles que defendem o evolucionismo.

Não sabemos que atitude a escola tomou diante desse pai, mas imaginamos que, preocupada com a formação integral dos seus alunos, deva ter explicado a ele o quanto era importante para a educação dos alunos expor não somente essas duas teorias, como também a versão que outras culturas têm para explicar a origem e a evolução da vida.

Uma escola que faz pensar possibilita às crianças e aos jovens pensarem por eles mesmos, trocarem ideias com seus colegas, amigos e familiares, antes de decidirem qual posição deveriam ter diante de questões complexas que exigem aprofundamento, reflexão, atividade autônoma do pensamento.

Mas, por que o pensar aparece aqui de modo tão relevante? Hannah Arendt, no seu livro A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, apresenta duas de suas conferências e numa delas analisa o julgamento do nazista Eichmann em Jerusalém.

Para Arendt, a banalidade do mal não se deve à existência de pessoas perversas, sem coração, mas à incapacidade de reflexão. Mesmo pessoas muito inteligentes podem padecer da ausência de pensamento. Eichmann dizia não odiar os judeus. Rezou em hebraico frente ao júri e às pessoas que acompanhavam o seu julgamento. Insistia em ter sido um bom pai, um bom marido, um bom funcionário, uma pessoa ordeira, que sempre seguia as normas e as regras às quais era submetido, por isso não entendia porque o consideravam um “monstro”.

Segundo a filósofa, não basta adquirir conhecimento. É preciso refletir sobre o meu lugar no mundo, a maneira como os sentidos desse mundo afetam a mim e àqueles que me cercam”.

 

 

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