A avaliação nas pedagogias tradicionais: permanências e desafios

Enílvia Morato Soares

Segundo Cury (1985), captar um fenômeno no conjunto de suas relações com os demais fenômenos e no conjunto das manifestações da realidade a qual pertence, só é possível por meio da historicização desse fenômeno. Essa foi a perspectiva que norteou a obra “Avaliação da Aprendizagem escolar: passado, presente e futuro”, escrita por Cipriano Carlos Luckesi e publicada em 2021. O autor confirma esse pressuposto ao utilizar-se do “recurso de ir para o passado e, de lá retornar ao presente tendo em vista compreender […] como aqui chegamos” (p. 19).

Para além da compreensão do presente, as contribuições históricas nos permitem abandonar “a posição ingênua de acreditar que a forma como agimos no nosso cotidiano é natural” para percebermos que, “de fato, agimos no contexto de determinações histórico-sociais” (LUCKESI, 2021, p. 19) que, por serem contraditórias, indicam a necessidade de construção do devir ou, em outras palavras, de “assumir, se assim o desejarmos, novos modos de agir” (Idem, p. 22).

Com o propósito de contribuir para a construção de um futuro mais promissor para a avaliação da aprendizagem, Luckesi (2021) inicia sua abordagem transitando do passado ao presente, situando a avaliação em três momentos: nas Pedagogias Tradicionais, nas Pedagogias da Escola Nova e na Tecnologia Educacional. Pontuarei aqui aspectos destacados pelo autor sobre a avaliação nas Pedagogias Tradicionais, objeto de reflexão pelo GEPA em encontros realizados nos dias 14 e 28/04. Nesse cenário, a avaliação foi analisada considerando a pedagogia jesuítica, a de João Amós Comênio e em Johann Friedrich Herbart. 

A defesa de Luckesi de que as pedagogias com fundamentos religiosos (jesuítica e comeniana) anunciavam tanto os cuidados necessários para a efetiva aprendizagem dos estudantes, como o uso classificatório dos resultados da avaliação para aprovar ou reprovar, sendo os exames escolares o principal instrumento utilizado, suscitou questionamentos no Grupo:

  • A Pauta do Professor definida na Ratio Studiorum[1] como uma caderneta na qual o professor registraria os resultados individuais dos estudantes visando subsidiar suas decisões referentes ao ensino, garantiria a diversificação do atendimento aos estudantes, uma vez que havia uma grande preocupação com o cumprimento do programa (mesmo que parte dos estudantes não conseguisse acompanhar) e com o preparo dos estudantes para os exames visando promovê-los ao nível escolar subsequente?
  • O que o autor chama de “aprendizagem”, uma vez que o ensino era, em grande medida, pautado na memorização por repetições?
  • A previsão antecipada de que alguns já nasciam destinados às atividades culturais superiores e outros aos serviços simples do cotidiano não seria uma avaliação informal desencorajadora e, portanto, seletiva?
  • A comunicação pública dos resultados e a competição como forma de estímulo aos estudantes, bem como o uso do medo e de castigos físicos não são indicativos de uma forte preponderância do uso classificatório e punitivo da avaliação?

Embora ainda no bojo das pedagogias tradicionais, “Herbart está situado, historicamente, na abertura de um novo modo de praticar o exercício pedagógico com base na Psicologia, que iniciava seus primeiros passos como ciência” (LUCKESI, 2021, p. 161), o que reverberou em avanços como a desconfiança quanto à validade dos exames impostos externamente e ao investimento na formação do caráter, decorrente de um consentimento interno dos estudantes. No entanto, o uso de recursos como prêmios e castigos para se obterem disciplina e a homogeneização do ensino percebida nos de passos metodológicos que deveriam ser seguidos para ensinar e aprender ainda se faziam presentes, segundo o autor.

A avaliação não foi, segundo Luckesi (2021), abordada de forma direta, mas podia ser percebida na dinâmica dos cinco passos propostos por Herbart (preparação, apresentação, associação, generalização, aplicação), visando subsidiar professores e estudantes na aquisição de conhecimentos, aspecto que não foi identificado de forma tão evidente pelo GEPA.

Identificar concordâncias e dissonâncias nas análises de Luckesi (2021) não foi, porém, o que de principal se projetou a partir do estudo, mas sim, compreender as heranças históricas desse período na organização do trabalho pedagógico e de modo mais específico na avaliação das aprendizagens praticada hoje em nossas escolas, o que pode contribuir para o fortalecimento da resistência à ideologia dominante que converte em permanente o que é, de fato, transitório.

Nessa direção, percebemos não só o quanto a avaliação se mostra refratária a mudanças, mas, também os obstáculos que ainda temos de superar em busca da desnaturalização de práticas classificatórias, seletivas, punitivas e excludentes. Em diferentes partes dos textos analisados, a sensação foi de que ainda vivemos no auge das pedagogias tradicionais. A meritocracia (premiação, punição, ranqueamento e exposição pública de resultados, etc) como meio de estímulo ao estudo; o exercício da memorização visando o êxito em exames e/ou para a aprovação, muitas vezes dissociado da conquista de aprendizagens; a excessiva preocupação em cumprir o currículo independentemente das condições de aprendizagem dos estudantes; o ensino organizado em etapas inflexíveis; entre outras, são ainda uma realidade em muitas de nossas escolas.

Luckesi (202) nos ajuda nessa caminhada, uma vez que compreender as determinações histórico-sociais do que ocorre hoje subsidiará nosso modo de pensar e orientará nossas escolhas e decisões em direção a um futuro mais justo e favorável a todos. É o próprio autor quem afirma que “o presente e o futuro estão em nossas mãos e o passado histórico, por seu turno, nos auxilia a reconhecer os caminhos trilhados assim como a escolher o modo de estar e viver no presente e em direção ao futuro”.

O desafio de uma educação escolar que consista em oportunidade real de aprender está posto e exige cuidados que passam, necessariamente, pelo uso da avaliação com propósitos formativos. Vamos a ele!

Referências:

CURY, Carlos R. Jamil. Educação e Contradição: Elementos metodológicos para uma Teoria Crítica do Fenômeno Educativo. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1985.

LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da Aprendizagem escolar: passado, presente e futuro. São Paulo: Cortez Editora, 2021.


[1] Ratio Studiorum era o Plano de Estudos da Companhia de Jesus que ditava o comportamento dos membros da hierarquia educacional jesuítica e indicava o que os mestres deveriam ensinar, estabelecendo regras práticas para serem aplicadas nos colégios. O detalhamento do processo pedagógico visava garantir o controle da Igreja nos territórios colonizados.