A infância na era da vigilância

JC Notícias – 17/08/2023

Nunca houve uma geração tão vigiada quanto a atual. Crianças e adolescentes são vítimas da coleta excessiva de dados por aplicativos online e alvos de intenso direcionamento de conteúdo publicitário específico – uma invasão que pode causar riscos e prejuízos a suas vidas offline. No entanto, embora seja uma realidade global, a vigilância online se espalha de maneira desigual pelo mundo: crianças e adolescentes na Europa desfrutam de níveis mais altos de privacidade e proteção de dados do que aquelas que vivem no chamado Sul Global

No Brasil, 93% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos acessam a internet, segundo a pesquisa “TIC Kids Online Brasil”, realizada em 2021 pelo Centro Regional para o Desenvolvimento da Sociedade de Informação (Cetic.br), uma organização que atua em parceria com a Unesco. São 22,3 milhões de usuários mirins atrás das telas. Desses, 78% usam redes sociais, 62% têm um perfil no Instagram e 58% participam do TikTok. Trata-se de uma geração de “nativos digitais” que cresceu conectada e tem, desde os primeiros anos de vida, suas interações mediadas pelas novas tecnologias. A identidade e a autoestima dessas crianças são moldadas no ambiente virtual, e toda a sua atividade na rede produz dados valiosos na era do “capitalismo de vigilância”.

Até completar 13 anos de idade, estima-se que uma criança nos Estados Unidos tenha por volta de 72 milhões de pontos de dados coletados por empresas de ad-tech. “É um capitalismo que se alimenta de dados e do monitoramento contínuo e da vigilância ininterrupta de tudo o que fazemos online, e extrai valor dessa vigilância, prevendo e influenciando nosso comportamento”, comenta Fernanda Bruno, professora de Comunicação e coordenadora do MediaLab da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “A agenda é produzir engajamento e mais dados, pois são eles que geram valor nas plataformas. Nesse universo, a criança é um alvo de extração de dados e de direcionamento de conteúdo e propaganda muito forte”, completa.

Privacidade violada

As consequências da coleta intensa de informações para o futuro desta geração ainda são desconhecidas, mas hoje já se sabe que sua privacidade está ameaçada. Um estudo da Human Rights Watch (HRW) lançou um sinal de alerta ao revelar que, entre março e agosto de 2021, em plena pandemia de Covid-19, crianças e adolescentes do mundo inteiro foram vigiados sistematicamente enquanto assistiam a aulas online por meio de aplicativos educacionais. A privacidade das crianças foi posta em risco ou violada diretamente em 49 países, incluindo o Brasil, por 145 das 163 plataformas de aprendizado investigadas pela organização.

Entre outros dados, as plataformas podiam colher informações sobre quem são as crianças, onde moram, o que fazem durante as aulas e quem são seus familiares. As tecnologias de rastreamento instaladas podiam ainda “seguir” os alunos até mesmo fora do horário das aulas virtuais. “Essa coleta excessiva de dados é preocupante, primeiro por uma questão de segurança. Alguns aplicativos coletaram o endereço IP do aluno, que pode determinar sua localização em um raio de um quilômetro. Se essa informação é vazada, pode expor a criança a perigos offline, a algum tipo de ataque real”, alerta Marina Meira, advogada e coordenadora de projetos da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa.

Direcionamento e manipulação

O HRW mostrou ainda que os aplicativos enviaram ou permitiram o acesso aos dados pessoais de menores a empresas de publicidade, na maior parte das vezes secretamente ou sem o consentimento dos pais. Meira salienta que no Brasil a publicidade infantil é ilegal, e o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes deveria ser realizado em seu “melhor interesse”, segundo a Lei Geral de Proteção de Dados, que entrou em vigor em 2020.

“Crianças e adolescentes em fase de desenvolvimento têm o direito de experimentar e entender quais são seus interesses, gostos e hábitos. A partir do momento em que há direcionamento de conteúdo publicitário específico para o seu perfil, acaba-se dirimindo esse espaço de experimentação e compreensão da própria personalidade. A proposta desses anúncios é realmente manipular os consumidores”, afirma Meira.

Riscos e benefícios

Com a mudança brusca do ensino presencial para o remoto, os próprios professores se adaptaram às novas ferramentas digitais de modo improvisado, muitas vezes ignorando os riscos e os benefícios oferecidos pelos aplicativos. De acordo com a pesquisa “TIC Educação”, também realizada pelo Cetic.br em 2021, os docentes não costumam escolher a ferramenta de sua preferência para usar em aulas virtuais: apenas 45% deles participam sempre das decisões sobre o uso de tecnologias digitais nas atividades escolares. Para Tel Amiel, professor de Educação da Universidade de Brasília, a adoção dessas plataformas educacionais que se revelaram abusivas durante o isolamento social foi uma solução paliativa de emergência, resultado de “anos de desatenção para a questão da infraestrutura na educação básica” no Brasil.

Amiel critica a falta de transparência dos contratos entre as redes de ensino e as empresas que desenvolvem as plataformas, muitos feitos sem uma consulta pública, tanto no ensino básico quanto no superior. “Havia uma infinidade de plataformas alternativas absolutamente viáveis, em escala industrial, como por exemplo o Moodle, usado por quase todas as universidades públicas, e o Conferência Web, em vídeo, que funciona muito bem, maravilhosamente bem, e são softwares livres”, diz o também ativista e defensor de recursos educacionais aberto.

A especialista Fernanda Bruno lembra que a extração e o compartilhamento de dados para fins estranhos à educação geraram uma “bola de neve” preocupante, pois os dados fogem facilmente ao controle. “O aplicativo Descomplica, por exemplo, podia monitorar os cliques e movimentos do mouse do aluno na plataforma. E uma das empresas com quem o app compartilhou dados é a Hotjar, que busca entender como o usuário se comporta em determinado site para mantê-lo engajado ali. Ou seja, é uma empresa claramente voltada para a influência de comportamento online, e isso, pensando no público infantil e adolescente, é muito grave”.

Políticas ilegíveis

A falta de transparência das plataformas acaba transferindo para os pais a responsabilidade de buscar informações e de se proteger de possíveis perigos no uso dos aplicativos. Estes, porém, muitas vezes não têm discernimento nem tempo para se dedicar a documentos obscuros e difíceis de decifrar.

“As políticas de privacidade são ilegíveis e incompreensíveis para a maior parte das pessoas. É muito difícil alguém parar para ler aquelas letrinhas pequenas, mas isso é um indicativo de que não existe uma preocupação geral com a proteção de dados”, afirma Meira, da Data Privacy Brasil. “É injusto colocar esse fardo só nas famílias. Precisamos cobrar do Estado e das empresas que dominam o ambiente digital uma postura mais ativa, para que efetivamente respeitem os direitos de crianças e adolescentes e criem produtos para o ambiente digital que sejam protetivos”.

Vigilância assimétrica

Embora seja uma realidade global, a vigilância online se espalha de maneira desigual pelo mundo. Em geral, crianças e adolescentes na Europa desfrutam de níveis mais altos de privacidade e proteção de dados do que aquelas que vivem no chamado Sul Global, que contam com legislações menos rígidas. Um adolescente de 17 anos que instala o TikTok no Brasil, na Colômbia ou na África do Sul, por exemplo, tem sua conta automaticamente definida como “pública”. Se estiver no Reino Unido ou na Alemanha, porém, o aplicativo oferece ao jovem imediatamente a opção de conta privada. Plataformas como Instagram e Whatsapp também oferecem variações semelhantes no tratamento de dados de acordo com o país onde se encontra a criança – uma “discriminação pelo design” criticada por organizações de proteção à infância.

“A vigilância acaba sendo assimétrica e aproveitando as brechas dos países do Sul Global. O Brasil até tem uma boa lei de proteção de dados, mas não um bom sistema de supervisão que garanta que ela seja aplicada”, afirma Bruno. “E há outra questão que nos torna mais vulneráveis: a população brasileira, em situação de pobreza maior, tem muito menos condição de optar por uma plataforma que seja mais adequada à proteção de dados pessoais. De modo geral, as pessoas utilizam o primeiro aplicativo que aparece. A própria condição de escolha é muito mais reduzida em países como o nosso”.

Goethe Institut

 

Ambiente escolar é o mais citado por brasileiros entre os locais onde já sofreram o racismo, diz pesquisa

JC Notícias – 15/08/2023

“A escola é um microcosmo que reproduz o ambiente em que vivemos na sociedade como um todo”, afirma Ana Paula Brandão, gestora e pesquisadora do Seta

Uma pesquisa da Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (IPEC), contratada pelo Projeto SETA e pelo Instituto de Referência Negra Peregum, coloca o ambiente escolar no topo da lista de locais em que os brasileiros mais afirmam ter sofrido a violência racial.

A cada 10 pessoas que relatam ter sofrido o racismo no Brasil, 3,8 foram vítimas da violência em escolas, faculdades ou universidades, de acordo com a pesquisa Percepções Sobre o Racismo, que foi concluída em julho.

O levantamento — que será debatido nesta terça-feira (15) no Auditório da Editora Globo, no Rio de Janeiro, em evento com apoio da Fundação Roberto Marinho — busca compreender de que forma a população brasileira percebe o racismo.

Veja o texto na íntegra: G1

Leia também:

O Globo – Experiência da escola é mais violenta para pessoas pretas, mostra pesquisa

 

Adoção de tecnologias digitais nas escolas não pode ser precipitada

JC Notícias – 04/08/2023

Nesta editoria especial do JC Notícias, deixamos claras a preocupação com a adoção de conteúdo 100% digital nas escolas de SP e a defesa dos livros nas mãos de quem quer e precisa aprender, mas também propomos uma conversa sobre como seria possível incluir as tecnologias em sala de aula de modo que elas ampliem oportunidades de aprendizado, sem limitar, excluir ou condenar o já tão prejudicado sistema de educação pública

A decisão do Secretário de Educação do Estado de São Paulo, Renato Feder, de abandonar o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para alunos do 6º ao 9º ano em favor do uso exclusivo de conteúdos digitais a partir de 2024 é motivo de grande preocupação na comunidade acadêmica.

Primeiramente, não se compreende qual o critério do governo estadual para tomar tal decisão que perturba uma série de direitos fundamentais de crianças e adolescentes, uma vez que o programa do MEC é financiado inteiramente com verba federal. Ou seja, não é um problema de falta de dinheiro.

Segundo, há um risco de conflito de interesse que deverá ser investigado: Feder foi membro efetivo do conselho de administração de uma empresa de informática que, segundo levantamento feito pelo site Metrópoles a partir de dados da Secretaria da Fazenda, é fornecedora do governo Paulista de longa data, e em 2021 faturou quase R$190 milhões com a venda de tablets e notebooks para a Secretaria da Educação – a pasta que hoje é comandada por ele.

Terceiro, e isso de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), não existem ainda evidências robustas o suficiente sobre a contribuição da tecnologia digital na educação. No Relatório Global de Monitoramento da Educação 2023, intitulado “A tecnologia na educação, uma ferramenta a serviço de quem?“, a Unesco alerta que grande parte dessas poucas evidências são produzidas pelas empresas que querem vender essas tecnologias.

O documento aponta também que a presença de equipamentos eletrônicos nas salas de aula prejudica a aprendizagem e a concentração dos estudantes, além de atrapalhar a gestão dos professores, porque cria obstáculos na interação com os alunos na condução das aulas. Dados de avaliações internacionais, como o Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (PISA), sugerem que o simples fato de um aparelho celular estar próximo aos estudantes já é suficiente para causar distrações e impactar negativamente o processo de aprendizagem, acrescenta a Unesco em seu relatório.

A Suécia é um exemplo.  A introdução indiscriminada de recursos digitais em sala de aula fez com que o desempenho dos estudantes despencasse no Estudo Internacional de Progresso em Leitura (PIRLS), exame internacional que avalia o desempenho em leitura dos(as) estudantes. Preocupado com a possível formação de analfabetos funcionais, o país suspendeu seu projeto de digitalização do ensino.

Quarto, todas as experiências estão indicando que é necessária uma transição do analógico ao digital. Não se substitui uma tecnologia por outra, de um momento para o outro, sem se saber muito bem dos resultados. Uma invenção que tem pelo menos 2 mil anos, que é o livro, em formato de códice, substituindo o formato de rolo, adotado na Antiguidade, é extremamente eficiente, além de ser um objeto fácil de manusear. Acresce que o manuseio do livro, como objeto físico, inclusive com a possibilidade de riscá-lo, ou rasgá-lo, faz parte do aprendizado da criança em relação à leitura, fundamental para a formação dela como sujeito de conhecimento.

Ao adotar exclusivamente conteúdos digitais, o Estado de São Paulo corre o risco de tolher o potencial dos estudantes e aprofunda ainda mais as desigualdades educacionais. Além de todas as questões sobre a importância da relação com os livros para o desenvolvimento criativo e intelectual dos jovens, a medida adotada ainda deixa para trás milhares de crianças que não têm acesso à tecnologia em suas casas ou que pertencem a comunidades com recursos limitados.

Nesta editoria especial do JC Notícias, deixamos clara nossa apreensão quanto a tal medida e nossa posição em defesa dos livros nas mãos de quem quer e precisa aprender, mas também propomos uma conversa sobre como seria possível incluir as tecnologias em sala de aula de modo que elas ampliem oportunidades de aprendizado, sem limitar, excluir ou condenar o já tão prejudicado sistema de educação pública.

Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

 

Cidadania e participação infantil na escola de anos iniciais: relato de experiência

Erisevelton Silva Lima – Diretor da Escola Classe 29 de Taguatinga-DF, pedagogo, professor da rede pública de ensino do Distrito Federal, doutor em educação pela Universidade de Brasília- UnB

          As ações voltadas para a formação para cidadania no interior da escola podem fluir de vários espaços, ou externos à sala de aula. Nossa escola é pública, vinculada ao Governo do Distrito Federal, localizada na área urbana da região administrativa de Taguatinga-DF, conta com cerca de 370 estudantes matriculados, pertencentes à faixa etária entre seis e doze anos. São 16 (dezesseis) turmas distribuídas, igualmente, nos dois turnos (matutino e vespertino). As crianças estão matriculadas em dois blocos: o primeiro diz respeito aos três primeiros anos do ensino fundamental, com possibilidade de retenção no terceiro ano; as demais, no segundo bloco, que corresponde ao 4º e 5º anos do ensino fundamental, com possibilidade de retenção no último ano. Trabalhamos com a organização escolar denominada ciclos para a aprendizagem. Não utilizamos sistema de notação e a  avaliação é pautadas pela função formativa. O desempenho dos estudantes é comunicado às famílias por meio de relatórios bimestrais, com ênfase nos aspectos qualitativos das aprendizagens evidenciadas.

            Conforme consta no Projeto político-pedagógico da escola, os temas da cidadania e do protagonismo estudantil tomam forma nas ações docentes, no serviço de orientação educacional e, também, na direção da escola.

Pelo terceiro ano consecutivo, após a realização da festa julina da escola, convidamos todas as crianças para o pátio a fim de realizarmos a assembleia definidora da aplicação da verba arrecadada pela referida ação com a comunidade escolar. Constituem passos da ação:

  1. Convite para sensibilização no pátio da escola, com a presença de todos os docentes e discentes.
  2. Explicamos a importância dos recursos, da boa aplicação do dinheiro público e do papel de todo cidadão e cidadã em participar e fiscalizar os recursos.
  3. Realizamos uma comparação entre o papel deles e dos pais, mães e familiares quanto à posição que ocupam na sociedade, em razão dos impostos que pagamos.
  4. Cada turma elege um menino ou menina como representante responsável pela realização da assembleia na sua sala de aula,  orientada e apoiada pelos(as) docentes.
  5. A turma define quais melhorias, aquisições de brinquedos, reformas e ou necessidades são prioritárias.
  6. O/a representante entrega ao diretor da escola as reivindicações.
  7. A equipe diretiva reúne-se, avalia as solicitações de todas as turmas e procede com as compras e melhorias, utilizando a verba da referida festa julina.
  8. No pátio da escola nova assembleia se realiza para apresentar os bens adquiridos e as melhorias realizadas, tudo por sugestão das crianças.

Os resultados são agradáveis, as crianças participam, levam a sério, fazem inclusive visitas a lojas e outros comércios acompanhadas dos seus pais para levantar preços e orçamentos. Sentem-se partícipes da vida econômica e política.

Continuamos apostando que a cidadania é objeto de ensino, aprendizagem e de avaliação.