Todas as crianças podem aprender?

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 Todas as crianças podem aprender?

Publicado em 02/01/2018 por Luiz Carlos de Freitas

Esta é a típica questão equivocada que a reforma introduziu para o público em geral com a finalidade de legitimar-se. Quando colocada nos meios educacionais profissionais, é respondida positivamente e não produz grandes polêmicas. É pensamento consolidado neste campo de estudo. A questão é introduzida como polêmica pela reforma empresarial da educação que, alegando falar em nome das crianças mais pobres, usualmente com maior dificuldade para aprender, insiste em polemizar com a finalidade de culpar a escola e seus profissionais pela não aprendizagem destas, tentando com isso justificar sua política educacional de controle sobre a escola. A escola está sendo intensamente disputada.

No entanto, nos meios educacionais, a questão é outra. Como educadores, tratamos o problema por um outro ângulo: quais são as condições que temos que criar para que todas e cada uma das crianças possam de fato aprender? Essa tem sido uma luta histórica dos educadores, que agora a reforma tenta subverter e chamar para si.

A reforma empresarial, ao contrário dos educadores, proclama a possibilidade e necessidade de todas as crianças aprenderem e, ato seguido, minimiza a importância das reais condições necessárias para a aprendizagem, substituindo-as por “controle”. Tal controle envolve a ação do professor no interior de uma gestão forte, com materiais didáticos definidos, objetivos a serem atingidos e testes de avaliação com consequências para alunos, professores e gestores. Ultimamente, a reforma tem apostado nas teses da privatização como forma de implementar seu controle.

De fato, os empresários somente agora, com o desenvolvimento acelerado das forças produtivas baseadas em alta tecnologia, lembraram-se da educação. Enquanto a produção (e o consumo) não a demandou em maior escala, não se viu empresário clamando por mais educação, pois trabalhador com maior formação é trabalhador mais caro. Enquanto o capital não engendrou uma solução para este problema, não demandou educação para todos.

Os reformadores não negam a existência de outras condições de aprendizagem, mas também não as afirmam como necessárias e por vezes, as desqualificam. Essa forma de pensar os leva frequentemente à tese de que é o “professor que faz a diferença”, mesmo em condições adversas. De fato, o professor pode muito, mas não pode tudo em quaisquer condições – especialmente com turmas grandes, maiores de 20 estudantes que retiram sua condição de lidar com a diversidade dos estudantes.

A reforma frequentemente está procurando alguma escola que atenda crianças mais pobres e tenha um IDEB mais alto para elevá-la à condição de exemplo nacional que comprove sua tese sobre a supremacia do “professor empenhado” ou “sob controle”. Outra não é a razão pela qual os reformadores americanos desenvolveram uma forma de pagamento dos professores baseada em “valor agregado”, ou seja, o salário depende de quanto o aluno demonstra ter aprendido em testes padronizados.

No Brasil, como nos Estados Unidos, tais teses receberam o endosso dos conservadores e estão desenhando um arcabouço liberal/conservador que restabeleceu, no MEC, a aliança já efetuada por tais forças durante o governo de Fenando Henrique Cardoso. O diferencial é de datas. Hoje, os processos de acumulação de riqueza estão exigindo uma radicalidade maior do que naqueles anos 90. Os liberais entram com as teses de “livre mercado” e os conservadores com as teses da “moralidade” e dos “bons costumes”. Uns e outros de olho na configuração do que a escola vai ensinar em termos tanto de conteúdo como de habilidades sócio-emocionais. A supervisão do processo é da OCDE.

Para quem está em contato com a realidade das escolas, independentemente da questão do salário, que não abordaremos aqui, as condições vão além do empenho dos profissionais da escola. Segundo Diane Ravitch, Arthur Goldstein em seu blog, resume as condições diretamente envolvidas na aprendizagem:

“Primeiro, os alunos devem estar dispostos a fazer o esforço para aprender. Em segundo lugar, o tamanho das turmas não deve ser muito grande. Em terceiro lugar, é absurdo esperar que cada aluno aprenda as mesmas coisas do mesmo modo e ao mesmo ritmo.”

Estas, sem dúvidas, são condições essenciais ligadas à aprendizagem nas escolas. Elas são tão óbvias que custa acreditar que os reformadores não as conhecessem. Conhecem, mas por postura ideológica não podem colocá-las em cena.

A razão de ocultar tais condições óbvias só pode ser esclarecida de fora da escola, a partir de uma análise sociológica da sociedade que a cerca, que complemente a análise cultural, pedagógica e psicológica do fenômeno educativo.

Toda educação é instituída em um determinado tempo e espaço social, os quais tentam conflitivamente determinar os objetivos gerais do processo educativo para atender finalidades postas por tal sistema social. Que em algum lugar e momento possamos fugir a isso, é apenas uma confirmação da regra geral que os reformadores procuram, agora, zelosamente fortalecer com suas propostas, com receio de perder o controle da escola. A escola é um espaço em disputa. Vivendo em uma sociedade estratificada socialmente e em rápido desenvolvimento tecnológico potencializado pela competição inter-empresarial, a escola é demandada a manter tal estratificação, seja em sua forma absoluta, seja relativa.

Estamos assistindo neste momento, por exemplo, o nascimento do “precariado”: um trabalhador relativamente mais informado e treinado, no entanto mais explorado ainda. Uma das variáveis que pospõem a crise do capital é o aumento da exploração combinada com “maior qualificação” exigida pelo avanço das forças produtivas. Márcio Pochmann explica o precariado:

“Como o país não tem condições de criar empregos de qualidade, porque não tem em curso uma política de criar empregos de qualidade, nós vamos gerar agora o desemprego de alta escolaridade. As pessoas estão se formando e não tem emprego compatível com a formação”.

“À luz de outras experiências internacionais o que se verifica é justamente o fracionamento de contratos de trabalho já existentes, dois ou três novos para um posto de trabalho já existente. Isso vai significar mais pessoas sendo contratadas com jornadas menores, os níveis de emprego, as necessidades da economia do capital em relação ao uso mão de obra se mantém o mesmo, o que acontece é que terão jornadas menores de trabalho e portanto mais pessoas serão contratadas.”

Leia mais aqui.

Uma das maneiras de se manter, pela escola, a estratificação social é exatamente tratar desiguais como se eles fossem iguais: uma vocação clássica da escola capitalista que unifica os tempos de aprendizagem e produz, como consequência, a estratificação dos desempenhos, o que serve de base para criar as “trilhas” de progressão dos estudantes no sistema educacional. Eis porque a reforma empresarial padroniza o processo educativo, seus tempos e espaços, de forma a produzir como resultado a manutenção da estratificação com as características que a sociedade demanda, criando filtros (testes padronizados, por exemplo), entre outras formas.

No entanto, os reformadores desqualificam esta análise como “ideologia de esquerda” e frequentemente a descartam no debate sob o argumento de que “são variáveis que não estão sob controle da escola”. Porém, os fatores externos à escola explicam mais da metade do desempenho acadêmico dos estudantes e isso não pode ser deixado de lado quando se trata de analisar causas da não aprendizagem.

Por definição, o liberal e o conservador não podem reconhecer que a diferenciação na aprendizagem possa ter, também, um componente social forte, proveniente da própria organização da sociedade. Mesmo que existisse, diriam, cabe à escola compensar. Caso reconhecessem o peso desta diferenciação na escola, estariam admitindo os problemas sociais que a esquerda denuncia.

De fato, também cabe à escola lidar com a diferenciação social, mas não para naturalizá-la ou ocultá-la como desejam os reformadores. E claro, é preciso criar as condições para que os professores lidem com tal diferenciação. A ocultação das diferenças não ajuda a resolver a questão. Ajuda menos ainda, assumir autoritariamente que a escola e os professores são os responsáveis por interromper a lógica social dominante. Na realidade, estas são formas de não se resolver o problema.

Instrumentos culturais como a base nacional curricular comum (fixando habilidades, conceitos, sequência e série para aprender de forma unificada e obrigatória), livros didáticos articulados a ela, testes e mais testes, impõem para a educação a função de tratar desiguais como se fossem iguais.

A BNCC aprovada e a reforma do ensino médio, projetos centrais para o governo atual, têm esta função. A BNCC do ensino médio não será diferente da BNCC da educação infantil e do fundamental. Nascerá determinada pela natureza da já realizada reforma do ensino médio, cuja vocação é manter a estratificação social. Isso termina por reduzir a necessária margem de flexibilidade que o professor necessita para desenvolver seu trabalho em sala de aula e contribui para manter a escola dentro dos marcos que interessam à sociedade atual, reduzindo riscos para o sistema.

 

 

 

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