“Defender a educação, a pesquisa e a escola pública é defender a democracia brasileira”, diz Boaventura de Sousa Santos em entrevista à ANPEd

JC Notícias – 22/10/2019

“Defender a educação, a pesquisa e a escola pública é defender a democracia brasileira”, diz Boaventura de Sousa Santos em entrevista à ANPEd

Na conversa, o docente da Universidade de Coimbra aborda a ofensiva contra a pesquisa e a ciência no Brasil à luz do contexto político dos últimos anos e da ofensiva reacionária, extremista e neoliberal a nível mundial, com grave comprometimento à democracia

A 39ª Reunião Nacional da ANPEd contou no dia 20 de outubro com conferência de abertura de Boaventura de Sousa Santos. Um dos mais importantes pesquisadores de ciências sociais da atualidade, o professor português concedeu entrevista ao portal da ANPEd e Revista Brasileira de Educação (RBE). Na conversa, o docente da Universidade de Coimbra aborda a ofensiva contra a pesquisa e a ciência no Brasil à luz do contexto político dos últimos anos e da ofensiva reacionária, extremista e neoliberal a nível mundial, com grave comprometimento à democracia. Nesse sentido, à hostilidade, sobretudo às ciências sociais e humanas, se justificam, dentre outros pontos, por serem estas perigosas ao neoliberalismo por criar conhecimento que pode pôr em causa algumas das premissas que ele impõe autoritariamente. Identificando um processo de apagamento da história recente do Brasil, Boaventura reivindica a abertura a uma nova epistemologia do saber que reconheça outros tipos de conhecimento e sujeitos.

Na Reunião Nacional da Associação será, dessa forma, assinado um convênio com a Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS), iniciativa que vem conduzindo em diferentes partes do mundo nos últimos anos. Sobre a realização do encontro, ele afirma que é de importância crucial. “Talvez nunca tenha sido tão importante como desta vez, sobretudo em período mais recente, porque, antes de mais é a importância de se defender a democracia. Eu penso que neste momento defender a educação, a pesquisa e a escola pública é defender a democracia brasileira.” – Clique aqui e acesse a entrevista na seção da RBE na plataforma Scielo.

Qual a importância da defesa da educação pública e da pesquisa no contexto atual do Brasil, país com o qual mantém proximidade há décadas?

É máxima a importância neste momento. Penso que os ataques que estão a ser deferidos contra a educação pública no Brasil, com os cortes a todos os níveis de educação e obviamente também à pesquisa, à toda a comunidade científica brasileira, são extraordinariamente negativos pro futuro do Brasil, porque está hoje demonstrado em todo mundo que em educação pública não há gasto, é investimento no futuro. Também o mesmo se pode dizer da pesquisa. Acima de tudo quando os países atingem um patamar em que podem efetivamente competir internacionalmente. O Brasil, no domínio da pesquisa, é hoje um país com uma vitalidade extraordinária em todas as áreas científicas, um dos grandes produtores de ciência, em todos os níveis. E naturalmente uma ciência que pode transformar-se também em tecnologia e, portanto, na valorização da economia, da sociedade em geral. Os cortes são fatais nesse momento, quando os cortes e ataques à pesquisa desmoralizam uma comunidade científica que ainda não foi plenamente consolidada – os investimentos no Brasil ainda estão num nível inferior àquilo que seria necessário para manter o atual ritmo de crescimento que se pretendia e dadas às ambições internacionais com os quais o país regulava até 2014 ou até 2016. E o mesmo se pode dizer da educação. A educação em todos os níveis, e particularmente no ensino superior, é aquela que sustenta, em grande medida, a própria vitalidade da ciência, não só porque a esmagadora maioria da pesquisa é feita em universidades, como também porque a ciência é feita pelos cientistas, que têm que ser educados em boas escolas, em boas universidades. Universidades que lhes tem que dar um incentivo a sua formação e a seu interesse pela pesquisa. Portanto, no momento em que a educação é vítima de cortes brutais, cegos e indiscriminados, é evidente que isso se repercute de uma maneira muito negativa em todo o patrimônio científico e educacional do país.

Estas medidas não são novidade. Isto é, toda a lógica do neoliberalismo é uma lógica contra a educação e muitas vezes também contra a ciência. Não é, obviamente, uniforme em todos os países. O neoliberalismo não quer necessariamente cortar a pesquisa, mas quer direcioná-la de uma maneira autoritária para as aplicações tecnológicas, industriais e de serviços. E, portanto, retira da ciência sua capacidade de se aprofundar ao nível da ciência fundamental não aplicada – uma visão estúpida e de curto alcance que o neoliberalismo tem da pesquisa. O neoliberalismo tende também internacionalmente a ser hostil às ciências sociais e humanas, na medida em que tal pesquisa não dá essa aplicação tecnológica direta que ele está de alguma maneira obcecada. Mas há também uma outra razão para esta hostilidade: nas universidades públicas e nessas áreas se produz conhecimento livre, crítico e independente. Isso é fatal para o tipo de modelo político e econômico que o neoliberalismo tenta impulsionar, porque esse modelo é autoritário, dominado pelo capital financeiro global, que obviamente convive muito mal com a própria democracia, e que por isso quer se apresentar sempre como sendo um modelo que não tem alternativa. Quando não há alternativa não há política. E, portanto, o neoliberalismo é, de fato, uma máquina de antipolítica. E essa antipolítica convive muito mal com o crescimento das ciências sociais e humanas precisamente e na medida em que elas produzem conhecimento livre, crítico e independente. Qualquer destes níveis de conhecimento pode questionar o autoritarismo, quer econômico, quer político, que está implícito no modelo neoliberal global.

Em nível mundial é um cenário de um ciclo reacionário em que a gente se encontra na própria Europa, na Índia, na Rússia, nos Estados Unidos, em muitos outros países, e obviamente no Brasil e na América Latina. É um ciclo que se sucede a um ciclo que foi progressista. Na Europa se designou como Social Democracia e procurou que a produtividade da economia se repercutisse nos salários e, portanto, deu vazão à criação de amplas classes médias, que caracterizam basicamente hoje o modelo político e econômico da Europa. Mas obviamente que este modelo está em crise na medida em que tem sido atacado pelo neoliberalismo exatamente pela razão de que este modelo, digamos, de distribuição de riqueza não agrada de maneira nenhuma ao capital financeiro global, que é absolutamente voraz no que diz respeito a sua rentabilidade, e isto particularmente no Brasil. Nos outros países, digamos fora da Europa, não houve propriamente uma social democracia consolidada. Mas houve entre 2000 e 2013 políticas de redistribuição social importantes e que não se limitaram apenas a essas políticas redistributivas – no Brasil, tiraram da miséria absoluta cerca de 50 milhões de pessoas. Mas também se refletiam nas políticas públicas em geral e nas de educação. Esse foi o período, por exemplo, em que mais floresceu a criação de universidades federais e, portanto, aumentou extraordinariamente a população universitária através de ações afirmativas, que procuraram também com isso enfrentar a injustiça histórica do colonialismo, que hoje continua sob a forma de racismo, de discriminação racial, que tem excluído os jovens negros de uma educação de qualidade, sobretudo universitária.

Foi um período de políticas de inclusão social relativamente limitadas, porque o modelo econômico foi o neoliberal, que numa certa conjuntura permitiu que todos ganhassem, não apenas os pobres, mas também os ricos – e ganharam muito. Historicamente isso foi devido ao chamado boom das commodities, isto é, o alto preço das matérias primas e agrícolas, em que o Brasil, por exemplo, foi bastante forte, do mesmo modo a Argentina, permitindo criar excedentes econômicos que se traduziram em políticas redistributivas sem alterar, no entanto, o padrão de injustiça social desses países. Ou seja, a diferença entre ricos e pobres continuou, possivelmente até se aprofundou, mas os pobres puderam ter uma migalha, digamos assim, dessa bonança do boom das commodities, e melhoraram consideravelmente as suas vidas, entraram no consumo e animaram o consumo interno do país, o que foi absolutamente notável, e os seus filhos começaram a chegar à universidade.

É contra tudo isso que age neste momento o neoliberalismo na versão brasileira, que é um modelo quase de laboratório, isto é, não é um modelo que siga a regras internacionais do que nós temos visto a outros níveis noutros país, como na Índia, por exemplo, onde o presidente acaba de ter uma retumbante vitória, mas com uma política nacionalista, uma política de criar a ideia de uma ascensão de classe média. No Brasil, ao contrário, temos uma política de destruição das classes médias, que já eram, obviamente, muito minguadas, muito pequenas. E, portanto, num país onde as políticas sociais, sobretudo na Educação e nas Ciências, não tiveram tempo de se consolidar.

Um investimento na educação e, sobretudo, na educação superior, é um investimento de várias gerações, que só se nota várias gerações depois. Porque é preciso que os formados entrem na vida ativa e profissional, preencham mais lugares no próprio sistema científico, se internacionalizem. E tudo isso leva tempo. E, portanto, o processo de criação ascendente de um sistema científico no Brasil e de um sistema de educação, sobretudo de educação superior, mais ampliado, está a ser liquidado, amputado, mutilado. E está impedindo que possa seguir o caminho de crescimento que tinha. E estes cortes têm um efeito destrutivo notável porque eles não se refletem apenas no imediato. Refletem-se na desmoralização da ciência e dos cientistas, na desmoralização dos professores e dos estudantes, e obviamente nos novos gargalos e nos novos impedimentos que vão ser criados às novas gerações de entrarem na universidade e eventualmente depois no sistema científico. Portanto tudo isso vai repercutir de uma maneira muito negativa nos próximos anos e nas próximas gerações. Por isso me parece que a terapia de choque que está sendo realizada no Brasil, tanto a nível econômico quanto a nível político, é quase uma terapia laboratorial. Neste momento o Brasil é quase um laboratório de políticas neoliberais extremistas, digamos assim, que vão levar à própria destruição do modelo democrático. O capital financeiro convive muito mal com a democracia, em todos os países, daí o autoritarismo e o crescimento da extrema direita em vários dele, e nomeadamente na própria Europa, como se acaba de ver nas últimas eleições europeias, embora o crescimento da extrema direita na Europa não tenha sido tão grande quanto ela previa. Portanto essa extrema direita continua ainda a ter que esperar por um novo ciclo eleitoral, para consolidar a sua força e para aumentar, se é que os democratas europeus vão permitir. Mas esse crescimento do autoritarismo está no Brasil a atingir um nível de quase ingovernabilidade, porque é um governo que tem mostrado uma dificuldade enorme em conviver com as instituições democráticas, seja o congresso, sejam os próprios tribunais, – que, aliás, o levou ao poder, digamos assim, através de uma altíssima e grosseira politização da justiça, na operação Lava Jato, conduzida pelo atual ministro da Justiça e certamente futuro candidato à presidência da república, Sérgio Moro. Portanto é um nível de ingovernabilidade que normalmente o neoliberalismo evita. É por isso que alguns movimentos conservadores que tiveram um papel fundamental no impeachment da presidenta Dilma, como, por exemplo, o Movimento Brasil Livre, não participaram de manifestações recentes de apoio ao governo.

Eu penso que estamos a atingir no Brasil um ponto particularmente difícil e de bifurcação, como dizemos em teoria da Física. Isto é, a partir de agora qualquer novo movimento pode levar a uma grande turbulência na sociedade brasileira. O sistema democrático no Brasil está num período de grande instabilidade, tem uma economia obviamente em crise crescente, e a recessão está próxima, é evidente que este modelo, este sistema, está desequilibrado. Quaisquer medidas de polarização podem levar a consequências que podem ir para o lado positivo ou negativo, mas que de todo modo vão criar uma crise de institucionalidade. Ora, qualquer que seja o resultado desta crise de curto prazo, ela põe em causa a estabilidade necessária do sistema científico e do sistema educacional que estava a ser construído no Brasil. Portanto estamos num momento de grande incerteza, a nível político, a nível econômico, que se repercute diretamente no sistema científico e no sistema educacional brasileiro e, nomeadamente, na educação superior.

Professor, o senhor já se referiu a um processo de apagamento da memória que estaria ocorrendo no Brasil, em parte semelhantes a fenômenos neoliberais vivenciados no mundo. Mas o que o senhor percebe mais especificamente no Brasil sobre esse apagamento dos processos sociais, políticos e de sua história recente no país?

Como eu digo, o Brasil é um laboratório neste momento de políticas autoritárias a nível mundial – e elas excedem e muito as fronteiras do país. O Brasil foi alvo de uma ação imperial dos Estados Unidos para tentar neutralizar uma potência de desenvolvimento intermédio e com grande população de poder de alguma maneira participar de uma alternativa ao capital internacional liderado pelos Estados Unidos. Refiro-me concretamente ao papel que o Brasil vinha a desenvolver com a política dos BRICs, portanto com a sua articulação ativa com outros países de desenvolvimento intermédio, que procuravam, fundamentalmente para se protegerem do futuro, criar uma alternativa não socialista, obviamente, mas uma alternativa capitalista ao capitalismo de influência norte-americana, hoje liderada pelo capital financeiro global e em decadência. É um sistema extremamente instável, porque hoje basta ler o Wall Street Journal para estarmos conscientes de que se prepara outra crise financeira de grande alcance. E, portanto, o Brasil teve que ser neutralizado não só no seu papel internacional de criar uma política internacional relativamente autônoma, que era uma tradição deste período democrático desde 1985, como também numa política também econômica relativamente soberana, isto é, não no velho sentido elitista, mas numa tentativa de colocar a riqueza do país ao serviço do desenvolvimento de todo o país em seu conjunto. Basta ver a questão do pré-sal com a entrega ao mercado internacional dessas grandíssimas reservas de petróleo que existem no Brasil. Tudo isso obviamente incomodava muito ao imperialismo norte-americano e o Brasil teve que ser neutralizado, utilizando todos os instrumentos legais e ilegais que podemos imaginar. Para a neutralização ser eficaz, é necessário apagara memória do que foi feito no período mais recente no país para tornar o Brasil uma sociedade um pouquinho mais justa e mais democrática. O apagamento deu-se em vários níveis. Obviamente que um primeiro nível não foi criado por este sistema atual, que neste momento está em vigor desde a eleição do presidente Bolsonaro, mas precedeu-o, foi de fato próprio da própria natureza da transição democrática no Brasil, que foi uma transição pactuada com as forças armadas que tinham dominado a ditadura militar no período anterior. Isso impediu que se fizesse uma investigação do terrorismo de estado que ocorreu neste período e que, portanto, os autores destes crimes, muitos deles militares de patentes superiores, pudessem ir para a prisão. Isso aconteceu na Argentina, mas não no Brasil. Houve de imediato um grande esquecimento de todo passado recente ditatorial do Brasil, precisamente pela natureza do pacto de transição. E isso obviamente teve um preço, que foi manter as forças armadas enquanto forças de segurança interna, e não apenas de defesa do Brasil contra agressores externos. Elas mantiveram-se ao longo deste período e têm agora, obviamente, uma grande preponderância no atual do governo do Bolsonaro. Portanto esta é a primeira dimensão, que não foi criada agora, apenas estavam criadas as condições, devido à natureza da transição, para que agora fosse praticamente muito fácil trazer oito ou mais generais para postos preponderantes do governo e um vice-presidente. E mais do que isso, as forças armadas serem hoje uma força de grande credibilidade democrática no Brasil, apesar de terem sido os grandes arquitetos da liquidação da democracia no Brasil em 1964. E alguns destes militares continuaram, aliás, com posições de mando no período posterior, sobretudo no serviço secreto brasileiro até muito pouco tempo. Portanto, esta é uma primeira dimensão.

A segunda dimensão é que o Brasil teve uma transformação notável com a eleição do presidente Lula, num país onde as elites são patrimonialistas, são herdeiras de toda desigualdade do período colonial e do período que se prosseguiu, que nós podemos designar como períodos de colonialismo interno. Por exemplo, do sul com relação ao norte e ao nordeste. Portanto este modelo sofreu um abalo extraordinário, não no modelo econômico, mas nas lideranças políticas. Continua sendo um modelo econômico que vinha de trás, mas houve realmente uma alteração política, que foi a ampliação das elites políticas, na medida em que se permitiu que um operário metalúrgico chegasse ao poder e o PT pudesse se transformar num partido de grande popularidade, de grande poder político, e o seu presidente, ao fim de dois mandatos, saísse do poder com uma taxa de aprovação nunca vista no Brasil e muito raramente noutros países, cerca de 86% de aprovação. E isso naturalmente teve consequências. Abalou as elites. Evidente que elas não deixaram de ganhar, como eu disse há pouco, porque o modelo econômico não foi alterado. Mas passaram a se sentir ameaçadas pela maior presença, digamos, nos corredores do poder de gente que não pertencia a essas elites.

E foi aí que decidiram reagir de uma maneira brutal com o impeachment da presidente Dilma, como digo, apoiado pelo imperialismo norte-americano, nitidamente, articulado com ele. Toda a operação Lava-Jato é uma operação internacional, cujos dados fundamentais vêm do departamento de justiça dos Estados Unidos e a articulação é feita através do juiz Sérgio Moro.

A situação econômica já não era a dos primeiros dez anos, porque o boom das commodities estava a terminar – a presidente Dilma, aliás, começou ela própria a impor alguma política de austeridade. Então se desenhava uma crise e uma elite brasileira pouco habituada a servir a democracia. Está provado hoje que a direita brasileira serve-se da democracia, mas não serve a democracia. E é por isso que entrou ativamente, quase unanimemente, na política do impeachment da presidente Dilma, que talvez seja a presidente mais honesta da América Latina, impedida pelos políticos mais corruptos da América Latina. Foi uma impaciência história da direita e das elites, pouco habituadas à democracia. Porque como tenho dito muitas vezes, se não tivesse havido o impeachment da presidente Dilma era bem possível e bem provável que a direita ganhasse as eleições em 2018 tranquilamente. Havia um desgaste muito grande, as condições de governabilidade já não estavam muito bem, porque o boom das commodities tinha terminado, o próprio PT era refém das alianças que teve que fazer com o capital brasileiro, e nomeadamente com o capital financeiro, e dificilmente aguentaria manter a popularidade que tinha mantido na década anterior. Mas a direita brasileira, impaciente, achou que era preciso um tratamento de choque, e com o apoio dos Estados Unidos, porque ela sozinha não poderia fazer, ou talvez não fosse a um extremo de fazer uma rendição tão grande, como por exemplo, a entrega dos recursos naturais, de petróleo, minério e da Amazônia às grandes empresas multinacionais sediadas nos Estados Unidos.

Portanto essa elite embarcou. E para embarcar nessa política teve que apagar da memória todo o momento anterior e criar, com grande apoio dos meios de comunicação, da mídia oligopólica, nomeadamente a Globo e seu grupo, a ideia de que aquela primeira década de 2000, que o povo tinha saudado ao despedir-se do presidente Lula com uma taxa de aprovação de 86%, afinal não tinha sido uma época boa, tinha sido uma época de corrupção. Corrupção e nada mais. Isso levou obviamente ao apagamento da memória e de todas as políticas sociais que ocorreram neste período. E este apagamento de todas essas políticas extraordinárias de promoção de educação e de inclusão social através da educação, nomeadamente a educação superior, de alguma maneira favorece os atuais cortes de educação. Portanto desmoralizou essa política social e a tornou obviamente vulnerável a qualquer intenção populista do neoliberalismo que, como digo, em geral não gosta da educação pública, não só porque ela produz conhecimento livre, crítico e independente, mas porque só olha para a educação como um possível investimento para o capital. Portanto o que quer é privatizar as universidades, privatizar a educação. E a educação pública no Brasil estava a ganhar aliados que não eram a classe alta, que deixou há muito tempo de apoiar a universidade pública brasileira, porque mandam os seus filhos para as universidades globais, dos Estados Unidos e da Europa – por vezes até no ensino secundário, no ensino médio. Não confiam no sistema educativo público, portanto já estavam a dar menos apoio à educação. Mas o sistema educativo desta última década estava a conquistar novos adeptos. As classes médias estavam, digamos assim, a melhorar seu nível de vida através do acesso à universidade. Portanto foi preciso apagar da memória toda esta melhoria para que agora fosse mais fácil criar uma ideologia anti-educação, como vimos em manifestações recentes no Brasil, com muitos cartazes contra a própria educação. Então a educação tornou-se também uma arma ideológica e a educação pública tornou-se um grande alvo.

O senhor falou de uma certa incompatibilidade da pesquisa em ciências sociais e humanas com o próprio neoliberalismo. Qual o papel da pesquisa nas ciências sociais e humanas e por que a incompreensão por certos segmentos da sociedade e uma deliberada hostilidade por parte do governo atual?

As ciências sociais são um grande instrumento, não necessariamente incondicional, mas são um grande instrumento dos processos de democratização das sociedades. Obviamente, isso não quer dizer que os cientistas sociais sejam agentes de esquerda necessariamente, mas o conhecimento que ela cria permite, digamos, que se construam argumentos racionais, que se possa argumentar com fatos e esse conhecimento d sociedade ajuda a mostrar o que nele está errado e deve mudar. O que acontece neste momento é que nós não estamos no Brasil num momento de argumentos racionais, caímos num momento de argumentos de fé, de crença num líder, de crença nas próprias fakenews, sem nenhuma distância racional. O crivo que está aqui é este: as ciências sociais e as humanas são perigosas para o neoliberalismo a vários níveis. O primeiro nível, naturalmente, é que elas permitem criar conhecimento que pode pôr em causa algumas das premissas que o neoliberalismo quer impor autoritariamente. Nomeadamente a premissa de que não há nenhuma alternativa à privatização, à liberalização da economia, à privatização dos recursos naturais, à internacionalização de tudo em quaisquer condições.

Portanto as ciências sociais e humanas hoje têm argumentos, e têm sido produzidos por cientistas sociais e por economistas no Brasil de grande renome internacional que mostram cada vez mais aquilo que está sendo demonstrado a nível mundial. É que o neoliberalismo não é bom pra economia. O neoliberalismo é uma mentira. O neoliberalismo é um grande sistema que permite transferir riqueza dos pobres para os ricos, e das classes médias para as classes altas. Não é bom para criar emprego, não é bom para criar crescimento econômico. A demonstração está feita, aliás, num pequeno país da Europa, e agora em outros países que estão a seguir a mesma linha, que é Portugal. Portugal entre 2011 e 2015 foi sujeito a uma receita neoliberal bastante dura, não tão dura quanto a que o Brasil está nesse momento a ser sujeito, mas uma receita neoliberal. Desde 2016 o país tem mostrado que, moderadamente, sem radicalismos, é possível criar alternativas às chamadas políticas de austeridade, como são aqui designadas. E apesar disso, e por causa disso, é que o país está a crescer economicamente. Baixou o desemprego, aumentou a paz social, há greves, claro, mas greves são organizadas, têm porta-vozes e têm demandas. E numa democracia é bom que isso exista. Mas a verdade é que a receita neoliberal provou que realmente era um convite ao desastre para este país. E neste momento na Europa está a enfraquecer lentamente neste sentido. A própria Espanha acaba de dar uma vitória retumbante a um partido socialista. E a Espanha já é uma das grandes economias da União Europeia. Portanto mostra-se que realmente não se faz crescer a economia deprimindo salários, deprimindo as pensões, deprimindo a procura interna. O que se tem que fazer é exatamente o contrário.

As Ciências Sociais estão hoje a produzir muitos argumentos que mostram, por exemplo, que a privatização da previdência é um desastre. Está provado por economistas de várias correntes. Vai obviamente encher os bolsos do capital financeiro, porque é evidente que são esses que vão gerir o sistema de capitalização e de privatização das pensões, mas obviamente não é bom para as classes populares. A análise foi feita já cabalmente, por exemplo, no Chile, e o vosso ministro, Paulo Guedes, foi o homem que interveio nesse processo e obviamente deve conhecer muito bem as consequências desse sistema. Mas como é um banqueiro, naturalmente serve aos interesses do banco e não aos interesses do país – e é por isso que se pretende a privatização. E de tal maneira é grave como chegou a ser mencionado no congresso por um dos ministros que os cortes nas universidades eram dependentes da privatização da previdência. Ou seja, o grande objetivo desse governo a nível econômico é criar um grande bolo de capital-dinheiro, não capital produtivo, para o capital financeiro. E essa é a mãe de todas as reformas. É por isso que se luta no Brasil nesse momento. Portanto, as ciências sociais criam obviamente argumentos que põem em causa muito daquilo que é hoje o discurso do capital dominante. Por outro lado elas, naturalmente, vão contra o apagamento da memória.

Tem-se hoje já no Brasil uma crescente produção científica, de ciências sociais, produzida por cientistas negros e indígenas, e também brancos e mestiços, ou pardos como se diz no Brasil, com pesquisas que têm vindo a contribuir para descolonizar a História no Brasil, para dar uma outra perspectiva, um outro conhecimento à História do Brasil. E, portanto uma luta ativa mostrando o que foi o colonialismo, o que foi a escravatura. Tem o Jessé de Souza, com sua “elite do atraso”, e tantos outros livros que têm sido publicados que mostram efetivamente como há muito a se descolonizar, há muito que se fazer pra se descolonizar a própria educação brasileira e a universidade. Portanto na universidade as ciências sociais têm esse papel de ir lutando contra o apagamento da memória. E é nessa medida que elas servem à democratização. Porque é o apagamento da memória que impede as classes populares, que foram vítimas de racismo, e continuam a ser vítimas do racismo, que se transformem em atores políticos e em cidadãos ativos. Nós assistimos no Brasil a emergência de mais movimentos sociais de matriz africana e indígena com maior consciência social e com maior conhecimento social. Portanto é um enriquecendo da História do Brasil, uma ampliação da paisagem das ciências sociais brasileiras, que não é agora apenas, digamos, um monopólio de uma pequena minoria de antropólogos, que estudavam os negros ou os indígenas. É uma pujante comunidade científica, sobretudo negra que está a rever a História do Brasil. E tudo isso incomoda quem não quer ampliar a democracia, quer dizer, é a velha divisão que a gente conhece no Brasil entre a Casa Grande e a Senzala. A Senzala estava a educar-se e, ao educar-se, estava a querer entrar na Casa Grande, que está a reagir de uma maneira brutal. Isso tem um forte componente das ciências sociais e humanas. A Casa Grande está apenas a tentar fechar as portas. Mas como elas são frágeis, o melhor é tentar fragilizar quem tenta forçá-las. Fragilizar essas classes que estavam a aumentar o seu capital educativo para poderem ter uma voz mais ativa na sociedade brasileira e ampliar, naturalmente, o espectro das alternativas políticas.

Professor, a sua experiência enquanto investigador das ciências sociais no Brasil acabou por forjar a sua própria ideia de epistemologia do saber, dos diferentes saberes que não são considerados em diferentes esferas, seja na política ou na academia. Como a Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS) exemplifica uma tentativa de chegar a esses outros saberes e qual lugar o pensamento de Paulo Freire, pensador tão atacado ultimamente no Brasil, ocupa nesta proposta?

Ainda bem que me faz essa pergunta, porque essa é uma forte dimensão da própria democratização do país e do mundo, no meu entender, que se dá por via da educação. É que para a educação ser democratizadora ela própria tem que ser democratizada. Temos que formar os formadores. E Paulo Freire sempre foi uma grande referência pra mim e é uma grande referência do que eu designo como Epistemologias do Sul. Elas são a tentativa de podermos aprofundar as lutas sociais através do fortalecimento dos conhecimentos que elas produzem no mundo de hoje, que é altamente inter-dependente e onde há um padrão de atividade política e de conhecimento muito mais renovado que no tempo das classes populares com quem trabalhou Paulo Freire. Ou seja, a educação tem que ser ela própria democratizada e em grande medida descolonizada. Por quê? Porque mesmo quando ela procura abrir-se às classes populares fala a partir de uma perspectiva elitista. Isto é, com um conhecimento único, com um conhecimento rigoroso que é o conhecimento científico que durante séculos foi feito e produzido por homens e não por mulheres, por brancos e não negros nem indígenas. E dos países dominantes. Ainda hoje se vê que as citações dos livros científicos são fundamentalmente de autores do chamado norte global. Portanto, me dei conta de que para fortalecer as lutas sociais era preciso criar outro sistema de justiça cognitiva, isto é, para termos justiça social precisamos ter justiça cognitiva. O que isso quer dizer? Precisamos de justiça entre os saberes.

As comunidades com quem eu trabalhei desde os meus verdes anos de doutorando, vivendo numa favela do Rio de Janeiro, na favela do Jacarezinho, ensinaram-me a sabedoria da população que vivia ali. Gente com quem eu convivi durante muitos meses e que me ensinaram muitas coisas sobre o sentido de vida, sobre o que é justiça social, como é que se devia organizar o Brasil. E lembre-se que eu fiz isso num período de ditadura no Brasil ainda. A partir daí toda a minha trajetória foi no sentido de começar a valorizar o conhecimento não científico. A ciência social é fundamental para a nossa sociedade, eu sou um cientista social, de maneira nenhuma tenho uma atitude anti-ciência. Agora o que eu digo é o seguinte: a ciência não é o único conhecimento válido, há outros conhecimentos válidos que têm que ser validados por seus próprios méritos. Ou seja, se eu quero ir à Lua, eu preciso do conhecimento científico, se eu quero conhecer a biodiversidade da Amazônia eu tenho que conhecer o conhecimento dos indígenas e das populações ribeirinhas. São elas que conhecem a biodiversidade da Amazônia. Temos diferentes objetivos, temos diferentes conhecimentos. A grande parte da população mundial não vive com o conhecimento científico. Os camponeses no Brasil, a agricultura familiar que continua a alimentar os brasileiros, continua a ser uma cultura onde o saber popular, o saber vernacular é muito forte.

Os movimentos sociais, e nós vimos isso desde o Fórum Social Mundial de 2001, em que o Brasil teve um papel protagonista, mostraram também que os movimentos organizados produziam conhecimento. E esse conhecimento não entrava na universidade. E, portanto, em 2003, propus ao Fórum Social Mundial a criação de uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais, que basicamente tinha dois objetivos: por um lado, eliminar de alguma maneira a distância entre o conhecimento científico e o conhecimento popular. Os cientistas sociais e os cientistas em geral, na sua redoma de vidro, mesmo quando estão solidários com os pobres e com as classes populares, sempre se pensam como detentores do saber e que não há saber para além e fora da universidade, para além e fora da ciência. Portanto era importante colocar em contato o conhecimento científico e o conhecimento popular. E por outro lado, um segundo objetivo era diminuir ou atenuar os preconceitos entre os diferentes conhecimentos populares, entre os saberes do movimento operário e os saberes dos movimentos de mulheres, entre o conhecimento dos movimentos indígenas e os do MST e da reforma agrária – concepções diferentes da terra, concepções diferentes de território, concepções diferentes de dignidade e, portanto, muito preconceito e muita distância entre os próprios movimentos sociais. Para fortalecer os movimentos sociais era preciso que se entendessem melhor e que se conhecessem melhor. E daí surgiram as oficinas da UPMS, que temos vindo a realizar por todo mundo onde, durante dois dias, se juntam cerca de 40, 50 pessoas, um terço acadêmicos, dois terços ativistas ou líderes de movimentos sociais, sempre movimentos sociais diferentes, nunca um só movimento, mas vários, para discutirem temas de interesse comum e propostas para os próprios movimentos. São eles que estabelecem uma agenda e fazem uma discussão onde os acadêmicos não podem dar aulas, porque ninguém pode falar mais do que uns poucos minutos, mas onde se criam rodas de conversa dos vários conhecimentos que circulam.

Há aqui uma influência óbvia do Paulo Freire, que tenho sempre salientado, mas traduzida para as novas exigências do mundo, onde também há muitos movimentos sociais que já têm seus intelectuais orgânicos. Têm os seus acadêmicos, gente com formação universitária, que mistura muitas vezes o conhecimento popular com o conhecimento universitário. Portanto, a UPMS tem vindo a tornar-se um instrumento daquilo que eu chamo da Ecologia dos Saberes, isto é, de articulação entre diferentes saberes, que por vezes obriga a ter uma tradução intercultural. E pensamos que isso contribui para aumentar a democracia. Como digo: aumenta a democratização do conhecimento, aumenta também a própria democracia. E é uma proposta de paz, não de guerra, é uma proposta de entendimento, de compreensão e de argumentação, não uma proposta de ódio, de liquidação de inimigos. É uma proposta onde se discutem argumentos diferentes de boa-fé e onde muitas vezes nas lutas se articulam diferentes conhecimentos.

E para dar um exemplo, eu estou bastante envolvido num movimento brasileiro contra os agrotóxicos, que envenenam a população, não só os consumidores, mas os próprios produtores e as suas comunidades, pelo fato de muitas vezes usarem produtos internacionalmente proibidos, ou por abusarem do seu uso sem o mínimo respeito pelas leis ambientais, que, aliás, existem no Brasil. É um movimento forte hoje no Brasil, que combina perfeitamente o conhecimento científico de médicos, químicos, de biólogos, de engenheiros que estão conosco e o conhecimento dos movimentos dos camponeses, de indígenas, que em suas comunidades conhecem muito bem as consequências diretas do envenenamento a que estão sujeitos, pela pulverização em áreas ou desmatamento sem regras em seus territórios. Portanto há aqui uma articulação de saberes. E é nisso que essa democratização dos saberes, em meu entender, vai contribuir para a democratização da educação. Nós temos feito convênios da UPMS com várias universidades do mundo, não apenas no Brasil, mas também no México, na Costa Rica, com os departamentos de extensão, para poder articular o conhecimento universitário e a universidade com esse conhecimento popular. E é nisso que eu penso que se possa contribuir para uma maior democratização da educação e também para capacitá-la a ser democratizadora e descolonizadora numa sociedade tão desigual como é o Brasil e infelizmente o mundo no seu todo.

Qual a importância do encontro de professores da pós-graduação, pesquisadores, alunos e professores da rede básica neste momento na 39a Reunião Nacional da ANPEd, onde o senhor será o conferencista de abertura?

É uma importância crucial. Talvez nunca tenha sido tão importante como desta vez, sobretudo em período mais recente, porque, antes de mais é a importância de se defender a democracia. Eu penso que neste momento defender a educação, a pesquisa e a escola pública é defender a democracia brasileira. E é defender um futuro democrático para as novas gerações. É tão básico quanto isso. E também obviamente que estaremos neste encontro não só uma defesa da democracia, mas também como uma promoção ativa do enriquecimento e do aprofundamento da democracia e do autoconhecimento do Brasil, através dos seus educadores e, portanto, através de uma rede geral da educação e da pesquisa. É este o objetivo.

ANPEd

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