GEPA em ação durante a pandemia – análise do livro A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias

Diante do cenário pandêmico hodierno, o GEPA em ação realizou, no dia 27 de março de 2020, videoconferência para analisar o livro do professor Luiz Carlos de Freitas, publicado em 2018: “A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias”, que discute os impactos dos ideais neoliberais e da política de reforma empresarial na educação. Compreender o contexto de desmonte da escola pública constitui movimento de resistência e, por isso, se faz premente.

OUTRO CAMINHO É POSSÍVEL!

Análise do livro – A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias

(Luiz Carlos de Freitas, 2018)

Em tempo de aceleração do ideário e princípios neoliberais, da expansão dos interesses privados frente ao público e do redimensionamento da relativa autonomia do Estado, a leitura do livro: “Reforma empresarial da educação: nova direita velhas ideias” nos alerta quanto aos perigos da privatização da educação pública. A obra descreve e analisa os caminhos que vêm sendo paulatinamente trilhados rumo à desestatização do ensino público, bem como propostas de resistência à instauração de tal propósito, posicionamentos com os quais o GEPA concorda, reafirmando seu compromisso com a escola pública e com o ensino de qualidade social.

Inicialmente, o livro situa historicamente o surgimento do neoliberalismo e o nascimento de uma nova direita, advinda da convergência entre conservadorismo e individualismo mercadológico e da combinação entre o liberalismo econômico e autoritarismo social. Esse movimento tem como base não apenas a questão econômica, mas também a ideológica. Seu ideário defende a apropriação privada e sua acumulação contínua, em detrimento do público e do estatal. Nessa perspectiva, a organização econômica mais eficaz seria o capitalismo competitivo, o livre mercado, a livre concorrência (Hayek, Mises, Friedman e Buchanan). A partir da concepção de sociedade baseada no livre mercado, a educação, antes concebida como direito, passa a ser entendida como um serviço a ser prestado.

Na visão reformista, segundo o autor, o estado é o principal inimigo da geração de qualidade da educação, daí a defesa de sua privatização. Como parte desse processo, os reformadores apregoam a: terceirização da gestão educacional; implantação dos vouchers como forma de deslocamento dos recursos estatais do espaço público para o privado; introdução, no interior da escola, de lógicas de gestão privadas e sistemas de ensino pré-fabricados (em papel ou na forma de software).

Freitas (2018) afirma ainda que as estratégias utilizadas como meios privatistas se efetivam sob três diferentes denominações: Reforma Empresarial; Movimento global da Reforma Educacional; nova gestão pública. Referendado em Castro (2011), o autor enumera os procedimentos da reforma empresarial, como sendo: i) padronização através de bases nacionais curriculares; ii) testes censitários; iii) responsabilização verticalizada. Essas ações, embora pareçam desarticuladas entre si, articulam a engenharia de alinhamento (bases curriculares/ensino/avaliação/responsabilização). Nesse sentido, a qualidade da educação torna-se também uma questão dos Tribunais de Contas, nos vários âmbitos da administração, podendo vetar gestores.

Para contrapor à implantação da reforma empresarial na educação, Freitas (idem) analisa a política de testes e accountability dos EUA. Para isso, recorre aos estudos de inúmeros pesquisadores: Carlson (2018); Loveless (2018); Koretz (2017); Hansen, Levesque,Valant &Quintero (2018); Ravitch (2013); Mathis & Trujillo (2016); Wong, Wing, Martins& krishnamacahri (2018). O autor conclui que a inserção da educação no livre mercado, a política de testes e de accountability e o currículo padronizado têm um efeito dramático para os países. Esses aspectos não geram mais qualidade na educação, pelo contrário, eles adicionam efeitos colaterais negativos ao processo educativo, tais como: a padronização cultural e intensificação da segregação social.  Por fim, conclui-se que a privatização da educação implica o afastamento do governo da gestão da educação, ainda que não de seu financiamento.

Para o autor, a privatização está sempre associada a dois outros elementos que lhe são fundamentais: a meritocracia e a responsabilização, ambos legitimados pelo resultado das avaliações. Assim como forma de regulação, a reforma empresarial apregoa: a testagem e a padronização dos objetivos e conteúdos de ensino; a criação de padrões cognitivos e morais que passam a ser objeto da avaliação. Tais estratégias instauram no interior da escola a predisposição à concorrência e à competição. Nesse ambiente, a disciplina passa a ser basilar para que as aprendizagens ocorram. Sob esse argumento, tem ocorrido, atualmente, a militarização de diversas unidades escolares, submetendo crianças e jovens a padrões cognitivos e morais.

Tais políticas causam impacto, também, na formação e no exercício do magistério, manifestando-se na regulação das agências formadoras de magistério, por meio da implantação da base nacional comum curricular e da base nacional da formação de professores, acompanhadas do apostilamento dos materiais didáticos e da implantação de plataformas de aprendizagem interativas.

Nesse contexto de formação, o tecnicismo retorna sob nova base: o neotecnicismo. Esse movimento assenta-se sob novas formas de racionalização do sistema educativo. Além disso, no cenário da formação são inseridos programas de credenciamento de professores, por meio de exames pós-formação, o que padroniza a formação e elimina a diversidade de projetos no processo formativo do professor. Como consequência, a formação torna-se aligeirada e pragmática, inclusive, com o retorno das didáticas específicas, há muito superadas no contexto da formação. O autor destaca que, além da desqualificação na formação, devemos nos atentar para a desvalorização do magistério advinda, entre outros fatores, do atrelamento do valor agregado ao salário aos resultados obtidos pelos alunos em testes.

Além das inúmeras críticas apresentadas, a obra tem também um cunho propositivo. Ao afirmar que um “novo horizonte é possível”, Freitas (2018) aborda a necessidade e as possibilidades de construção de uma outra perspectiva de educação. Reafirma que por ser a  escola uma instituição social, historicamente construída, não é justo que esteja  a serviço de um setor específico da sociedade, no caso, o empresariado e suas fundações.             Defendendo a qualidade social do processo educativo, o autor reafirma que as vivências dos espaços da escola ensinam não só a aprendizagem formal em sala de aula, mas também a constituição da personalidade e da sociabilidade. A escola vai muito além de aprendizagens restritas à disciplina básica guiadas por bases nacionais curriculares, com o objetivo de referendar a elaboração de testes padronizados. Ela é um espaço democrático e coletivo e deve permitir a construção de acordos a partir de diagnósticos locais que: “a) envolvam o desenvolvimento de modelos multidimensionais de avaliação; b) incluam aspectos qualitativos e quantitativos; c) desenhem processos de participação dos atores da escola e; d) permitam a apropriação dos resultados das avaliações pela comunidade escolar”.

Uma proposta de resistência foi apresentada na última parte do livro. Nessa parte, são apresentados  20 pontos que podem auxiliar o processo de organização da resistência  às políticas da reforma empresarial da educação. Entre os pontos enumerados,  destacamos: a exclusão da área da educação da Lei de responsabilidade fiscal; o apoio aos dispositivos constitucionais que garantem investimento na educação; a valorização da gestão democrática;  a eliminação dos testes censitários de avaliação em larga escala nacionais e estaduais; a  luta pela revogação da Base Nacional Comum Curricular atual, da educação fundamental e do ensino médio; a defesa da construção de outra proposta a ser concebida com o envolvimento dos atores educativos; a luta contra a desprofissionalização do magistério, assegurando   condições adequadas para a formação teórica e prática.

Como conclui Freitas, “não parece ético que a educação seja colocada a serviço de um setor da sociedade fortemente determinado a controlar os conteúdos, métodos e finalidades da educação”(p. 124). Não pode ser ético a escola, uma instituição historicamente construída e de caráter público, ser controlada por setores econômicos privados e seus interesses particulares.

Por fim, o autor nos alerta que, apesar da política agressiva da “nova direita” e da reforma empresarial, nada evita o desenvolvimento de contradições geradas na prática educativa por essas mesmas políticas e, com isso, “o clamor por um conceito mais amplo de educação que não caberá em uma mera coleção de competências e habilidades, nem em testes” (p. 138).

 

 

FREITAS, Luiz Carlos de. A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias. 1.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

 

 

Impressões sobre os estudos realizados no encontro pelas pesquisadoras do GEPA:

 

Cristhian Spindola Ferreira

Em decorrência do novo cenário mundial, os grupos sociais fortaleceram seus momentos de discussões em formato on-line, resultante de um processo de instrumentalização desenvolvido em uma sociedade técnico informacional. Nesse sentido, a reunião virtual do GEPA proporcionou a continuidade das ações deste grupo, constituindo-se em um debate profícuo acerca do livro em questão. Dentre vários aspectos abordados no debate, destaco o processo democrático como premissa para garantir as discussões e ações de estruturação de um sistema educacional que compreenda e atue na equidade social. Entretanto, os detentores de poder no Brasil, a “nova direita”, consideram a democracia como algo que pode ser relativizado ou até não existir, fato que influencia diretamente nas atuais políticas educacionais.

 

Elisângela T. Gomes Dias

Estamos passando por um momento jamais vivido na contemporaneidade. O isolamento social nos desafiou a criar “novos” processos para nos relacionar e continuar estudando, pesquisando, trabalhando… Além da análise do livro, refletimos acerca da responsabilidade de cada uma de nós para enfrentamento com responsabilidade da pandemia provocada pelo COVID-19. Em especial, destacamos a importância do Sistema Único do Brasil, o maior do mundo. O SUS pode não está preparado para atender as necessidades emergenciais, mas sem dúvida é o mais democrático e consegue alcançar a todos os brasileiros. E a educação, precisa se reinventar? Certamente! Mas temos clareza e defendemos a gestão pública para serviços públicos fundamentais, como saúde e educação. E o que é necessário? Investimento e valorização dessas carreiras, entre outras medidas elencadas na obra de Freitas (2018). A lógica privatista, tônica de governos neoliberais, contribui para o aumento das desigualdades, além da difusão de uma ideologia que valoriza a competição, a classificação e o individualismo. Em situações como a que estamos vivendo, fica ainda mais evidente a importância do Estado de direito e do significado de palavras como cooperação, solidariedade, empatia e fraternidade. E o ano letivo, como fica? A tecnologia está aproximando estudantes e professores, que abrem as portas de suas casas e se mobilizam para fazer diferente. Não é hora de pensar em tempo perdido, menos ainda em processos avaliativos e exames, mas em aprender com os desafios. Investir menos em avaliações externas e mais em formação continuada e infraestrutura das escolas é o que reivindicamos há tempos.

 

Enílvia R. Morato Soares

A distância entre o que se concebe e o que se pratica decorre, muitas vezes, de incompreensões quanto aos fatores que influenciam e, muito comumente, determinam as diferentes realidades. Na escola não acontece diferente. Caso não sejam devidamente compreendidos, aspectos que dificultam o alcance de propósitos educativos emancipatórios são desconsiderados, mantendo-se firmes enquanto obstáculos. Compreender como se deu a instauração de uma “nova direita” que contribui, não só para manter viva, mas também para fortalecer a não tão recente onda neoliberal que reforça a desigual e injusta divisão de classes, contribui para renovar forças visando o seu enfrentamento. Reside aí, a meu ver, a maior contribuição da obra e dos estudos sobre ela realizados, que, espero, sejam disseminados entre os demais educadores.

 

Leda Regina Bitencourt da Silva

A crise humanitária provocada pela pandemia do coronavírus colocou a população em situações inusitadas, como ter que ficar em casa e não poder cumprimentar as pessoas.

Nesse sentido, o encontro do GEPA via on-line demonstrou que realmente é possível reunir pessoas, mesmo a distância, com o uso de tecnologias. Quanto ao livro, as críticas do autor em relação às políticas públicas convidam a reflexões sobre o que está posto como senso comum e contribui para a promoção de um movimento permanente de resistência e não aceitação passiva dos discursos neoliberais, muitas vezes naturalizados pelos reformadores empresariais.

 

Rose Meire da Silva e Oliveira

A videoconferência foi um momento de alento diante do isolamento social em que estamos vivendo. Perscrutar os efeitos negativos do ideário neoliberal que subjaz às reformas empresariais e compreender que disso deriva a privatização e padronização da educação me remete a perceber o quão grande é minha responsabilidade social junto à comunidade escolar, enquanto professora e pesquisadora, em defesa da escola pública de gestão pública. Como grupo, nos reinventamos para seguirmos em frente nas discussões dos temas que tanto nos são caros: a avaliação educacional e a organização do trabalho pedagógico.  

 

Sílvia Lúcia Soares

Nesse momento tão singular de grandes receios e imprevisibilidade, as alterações no cenário nacional e mundial trazem diferentes análises e previsões de futuro:  há aqueles que apostam em uma mudança paradigmática da sociedade pós-crise e há os céticos que apostam no aprofundamento acelerado das transformações em curso. No entanto, para qualquer tentativa de compreensão das particularidades do real, esbarramos novamente na questão que permeia toda a obra de Freitas: as incoerências do processo de privatização do público. Em meio a tudo isso, as necessidades de sobrevivência fazem emergir a discussão da importância da esfera pública como espaço democrático do sujeito de direito.  Essa discussão pode ser exemplificada pela declaração do ministro britânico Boris Johnson, líder conservador, ao sair do hospital após contaminação pelo covid-19, agradeceu e enalteceu o tratamento dispensado, afirmando que o serviço público de saúde o salvou. Cabe aqui a indagação: nesse momento, a centralidade no mercado financeiro responderia à demanda social ora apresentada? Freitas responderia:  o direito social não pode se transformar em serviço. O Estado não pode ser socialmente mínimo. A saúde e a educação como direito não podem ser transformadas em mercadorias rentáveis. No livro, o autor analisa a educação, mas suas ideias podem ser estendidas às demais áreas sociais, principalmente, a defesa da igualdade de condições para todos no processo de construção de uma sociedade mais solidária, ética e justa.

 

Vânia Leila Nogueira

O livro analisado me reportou à previsão feita pelo autor por meio do trabalho apresentado na ANPEd em 2004, intitulado: “Ciclos ou Séries? O que muda quando se altera a forma de organizar os tempos – espaços da escola?”.  Nele, Luiz Carlos de Freitas afirma “Os estudos, nos próximos anos, esclarecerão melhor esta relação neoliberalismo/pós-modernismo/conformismo social”. O cenário antevisto parece se confirmar na obra analisada ao aprofundar as relações citadas, bem como situar o papel do estado e os riscos com os quais a escola pública se depara ao longo da ofensiva mercadológica. Os processos cruéis de financiamento por meio de vouchers e outras estratégias neoliberais fragilizam a educação como direito e a transformam em mercadoria. No nosso diálogo sobre o livro, a preocupação geral foi com a autonomia da escola e os processos cruéis como lawfare, a lógica meritocrática, bem como o processo de privatização. Ao longo do texto Freitas rechaça a máxima neoliberal de Hayek “É preciso preservar a propriedade, o contrato e a vida. Mas não “todas as vidas” e propõe uma resistência contra a nova direita, alertando sobre os mecanismos por ela utilizados no ataque ao direito público.

 

 

 

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