Educação e Pandemia: a avaliação em foco
Enílvia Rocha Morato Soares
Em entrevista ao periódico El País (apresentada ao final deste texto), Andreas Schleicher, diretor de Educação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e principal responsável pelo relatório do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), aponta consequências do prolongado afastamento de crianças e adolescentes do ambiente escolar em função da crise do coronavírus, bem como para mudanças que deverão ser introduzidas nas escolas após o final do isolamento, visando dirimir os efeitos negativos decorrentes dessa ruptura.
Medidas adotadas na China e dificuldades enfrentadas na Espanha para o enfrentamento do problema, citadas pelo pesquisador para exemplificar suas ideias, potencializam preocupações diante do contexto brasileiro de avassaladoras desigualdades sociais e investimento em políticas que, se não as ignoram totalmente, desconsideram o fato de que esforços pessoais não são suficientes para superá-las. Na esteira dessa realidade caminha a educação. Distante de ser uma prioridade do atual governo e conduzida por ideais meritocráticos, desigualdades de aprendizagem tendem a se fortalecer com e a partir da quarentena, elitizando oportunidades de ascensão educacional e social.
Dentre as alternativas apresentadas por Andreas Schleicher para minimizar os efeitos da crise, destaco aqui a avaliação, uma vez que, segundo o próprio entrevistado, “educação e avaliação andam de mãos dadas”.
O termo “avaliação” é mencionado somente ao final da entrevista, o que não impediu que a temática pautasse grande parte das respostas do interlocutor. A função formativa da avaliação também não foi nominalmente citada como a mais adequada para que o ensino não se dissocie da conquista permanente de aprendizagens, deixando dúvidas quanto ao posicionamento do pesquisador a esse respeito, especialmente se considerada a oscilação de suas considerações.
Uma delas diz respeito à importância da manutenção da avaliação em tempos de isolamento. Ao afirmar que a avaliação é “uma forma de conseguir que os alunos não se desconectem”, Andreas Schleicher sugere o uso dessa prática como meio de coerção para a manutenção dos estudos. Mesmo quando ressalta a necessidade de uma avaliação que possibilite aos professores “acompanhar a evolução do aluno”, uma vez que, “se não fizerem isso, […] se tornarão cegos”, não faz referência aos movimentos que devem suceder às percepções desveladas visando promover avanços, característicos de um processo avaliativo formativo.
A defesa da função formativa da avaliação pode, no entanto, ser percebida quando o entrevistado repudia a reprovação, afirmando ser ela “a pior solução” em tempos de pandemia e atribuindo aos sistemas educacionais a tarefa de “encontrar a forma de redobrar seus esforços e analisar como os alunos com menos recursos em casa podem continuar aprendendo”. A avaliação formativa é parte indissociável dessa dinâmica, seja por parte dos sistemas educacionais que precisarão avaliar os diferentes contextos visando adotar medidas que permitam atender a todos, indistintamente; seja por meio das escolas e de seus educadores que deverão atentar-se para as particularidades de cada estudante, visando assisti-los em suas necessidades. Trata-se, portanto, de um processo que descarta a classificação de estudantes, válido, a meu ver, não só para tempos de afastamento social, mas sempre que prevalecer o desejo de democratizar saberes.
O trabalho colaborativo entre os docentes, viabilizado e retroalimentado, entre outras coisas, por avaliações sistemáticas do trabalho pedagógico realizadas na e pela escola, é também destacado por Andreas Schleicher para o enfrentamento da crise. O pesquisador assegura que, em momentos como o que estamos vivendo, o professor “não tem como resolver os problemas sozinho, só em equipe”. É preciso, segundo ele, “fomentar a cultura colaborativa e não estar esperando instruções dos Governos, e sim assumir a responsabilidade da situação e contatar colegas para lançar medidas inovadoras”.
Embora a solidariedade e o espírito cooperativo entre professores seja uma necessidade que se acentua em momentos de distanciamento social, colocar nas mãos dos professores a responsabilidade de, unilateralmente, “lançar medidas inovadoras”, significa minimizar, ou mesmo isentar o Estado da responsabilidade de buscar meios para assegurar a todos o direito inalienável de aprender. Sem desconsiderar a distinção do papel do professor para o alcance desse propósito, a complexidade do processo educativo envolve ações que extrapolam o âmbito das escolas, demandando do poder público, a adoção de medidas que viabilizem e fomentem iniciativas locais.
As contradições presentes na fala do entrevistado, oriundas, possivelmente, do trabalho que realiza junto à OCDE, que induz a uma sinonímia entre exames externos e avaliação, não diminui o valor de análises que sugerem formas de condução do trabalho escolar durante e após a pandemia. Diferentes abordagens nessa direção são necessárias e devem ser meticulosamente analisadas, uma vez que esse período certamente deixará marcas e o caminho a ser trilhado determinará os novos rumos da educação.
Independentemente das decisões definidoras desse percurso, tornar a escola uma instituição com potencial de “maior igualador social”, conforme defendido por Andreas Schleicher, depende, em grande parte, de processos avaliativos que possibilitem a construção e a condução de um trabalho pedagógico colaborativo e promotor de aprendizagens emancipadoras. Vencer os desafios impostos por uma realidade social fortemente marcada pelo individualismo e pela competitividade, que influencia o trabalho escolar, condenando “desavantajados” a assim permanecerem, se apresenta, portanto, como obstáculo a ser superado. A imprescindibilidade da educação escolar nesse processo reforça a necessidade de buscar meios de minimizar os efeitos da pandemia. Avaliar formativamente está, certamente, entre eles.
Entrevista:
El país – 23/04/2020
Pandemia de coronavírus
“Professores terão que mudar seu jeito de ensinar depois da quarentena”
Andreas Schleicher, principal responsável do relatório PISA da OCDE, considera que o custo social do fechamento das escolas pela pandemia é dramático Andreas Schleicher (Hamburgo, 55 anos), diretor de Educação da OCDE e principal responsável pelo relatório PISA ―que mede o nível de conhecimento dos alunos de 15 anos de 75 países em ciências, matemática e leitura― acredita que a pior consequência do fechamento das salas de aula pelo coronavírus é o desaparecimento durante meses do maior igualador social: a escola. Na sua opinião, é o único lugar onde todas as crianças recebem o mesmo tratamento, independentemente da situação pessoal que cada um tenha em casa. “Ali veem outra forma de pensar, de agir e até de andar… Aprendem o conceito de responsabilidade social.” Por isso, seu maior medo é de uma fratura da “fábrica social” em que os colégios se transformaram. Pergunta. Um dos últimos estudos da OCDE indica que um em cada 10 estudantes não têm uma mesa de estudos em casa.
Qual é a melhor solução para os alunos mais desavantajados? É passar de ano com o resto de seus colegas? Resposta. É uma pergunta complicada. Acho que fazer os jovens repetirem o ano é provavelmente a pior solução, porque, além de perder um ano, vai estigmatizá-los. Os sistemas educacionais devem encontrar a forma de redobrar seus esforços e analisar como os alunos com menos recursos em casa podem continuar aprendendo. Há uma grande espera depositada nos professores, e são eles os que têm de agir como mentores, inclusive dos trabalhadores sociais, e se manterem em contato permanente com seus alunos. P. Pode ser problemático que em setembro [início do ano novo letivo na Europa, após a atual quarentena] as salas de aula se encontrem com uma proporção elevada de alunos que não assimilaram bem os conhecimentos do curso anterior?
R. Em setembro o ambiente de aprendizagem e o ambiente das salas de aula serão mais diversos que em qualquer outro ano. Haverá alunos que voltarão entusiasmados, com muitas aprendizagens on-line que os terão enriquecido, graças ao apoio de suas famílias. Outros chegarão desmotivados, e esse é o desafio: aumentar o reforço escolar para essas crianças. P. A reabertura das escolas ocorre a diferentes velocidades na Europa. Os especialistas insistem em que a cada mês a desigualdade cresce exponencialmente.
R. O custo social do fechamento das escolas é dramático. Diferentes pesquisas mostram que não é a cada mês, e sim a cada dia. Inevitavelmente, a lacuna de desigualdade vai aumentar, e precisamos encontrar fórmulas para mitigá-la: os alunos terão que dedicar mais horas ao estudo, será preciso envolver as famílias… Não há uma resposta clara. As famílias com mais recursos poderão compensar com aulas extracurriculares pagas do seu bolso. O que as famílias querem para seus filhos é o que o Governo terá que assegurar para todos. P. Levando-se em conta a crise econômica que está começando, é realista pensar que os Governos vão priorizar o orçamento educacional para assegurar esse reforço?
R. O futuro dos nossos países depende da educação; as escolas de hoje serão a economia de amanhã. Desde que começou a pandemia, o caso da China me impressionou. Uma das suas prioridades foi a educação. O Governo lançou uma plataforma gratuita de aprendizagem na nuvem com 7.000 servidores e 90 terabytes de banda larga, que permite que 50 milhões de alunos se conectem simultaneamente. Apostar na educação é uma decisão que toda nação deveria tomar.
P. É uma questão de dinheiro ou de vontade política?
R. Efetivamente, essa medida custou muito dinheiro, e grande parte dele foi doado por companhias tecnológicas. Há dois pontos de partida que são importantes. Desde o primeiro dia, todos os professores na China se envolveram com o uso dessa plataforma. Não se limitaram a dizer aos alunos que a usassem, como, além disso, telefonaram diariamente para eles a fim de entender claramente suas necessidades. Prestou-se muita atenção aos alunos sem possibilidade de acessar a Internet, que receberam livros didáticos e materiais, dentro de um plano organizado pelas escolas. P. Por que em países como a Espanha e a França não se tentou lançar esse tipo de plataformas, se as já existentes não têm capacidade suficiente? R. O Governo espanhol tem feito um grande esforço para usar ferramentas digitais e tem agido bem na busca por aliados da indústria tecnológica. Acredito que o mais difícil para eles tenha sido envolver os docentes, é aí onde provavelmente os esforços devem ser concentrados, em conseguir que os professores sejam parte ativa nesta mudança. O ensino on-line será crucial no futuro do ensino, os professores deveriam se esforçar mais.
P. Qual é sua recomendação para que o trabalho nestes dias seja eficiente?
R. Como professor, neste momento você não tem como resolver os problemas sozinho, só em equipe. Nisso a Espanha tem muito trabalho a fazer. Segundo os resultados do relatório Talis, os docentes espanhóis estão entre os que menos colaboram entre si, trabalham de forma isolada em sua sala de aula. Só 24% declaram participar de uma rede de colaboração para desenhar planos de docência ou compartilhar material pedagógico, frente aos 40% de média dos países da OCDE. É importante respeitar a autonomia dos docentes, mas neste momento é preciso fomentar a cultura colaborativa e não estar esperando instruções dos Governos, e sim assumir a responsabilidade da situação e contatar colegas para lançar medidas inovadoras. Os líderes de cada escola têm que se conectar aos professores, criar comunidades e comitês entre diferentes colégios. Um dos resultados do PISA é que 50% dos professores em escala mundial não se sentem cômodos com o ensino digital.
P. Os dados do Talis dizem que apenas 59% dos diretores desenvolvem ações para conseguir a colaboração entre docentes. Quem deve mandar essa mensagem? R. A crise amplifica a necessidade de estarmos conectados. Essa mudança deve partir da própria comunidade educativa. Os bons líderes não estão nos gabinetes decretando ordens, estão envolvidos na solução, de forma ativa. O Governo afinal está muito longe de ter um efeito sobre o que acontece nas salas de aula. Os professores na Espanha continuam muitos dependentes do que a Administração dita.
P. Os docentes deverão modificar sua forma de ensinar em setembro?
R. Absolutamente. O grande preço que vamos pagar pela crise não é só a perda de aprendizagem, e sim os jovens afetados pela insatisfação, pela decepção e que perderam sua confiança no sistema educativo. [As escolas] terão que escutar mais, detectar a necessidade de cada um e desenhar novas formas de aprendizagem para se encaixar em diferentes contextos pessoais. Não se pode voltar como se nada tivesse acontecido.
P. Como se deve avaliar durante o confinamento? R. Devemos realizar a máxima avaliação possível. Educação e avaliação andam de mãos dadas. Quando você está na escola, sabe como cada estudante está evoluindo, mas, quando não os vê dia a dia, é preciso usar ferramentas on-line para ver se ele está aprendendo. Sou muito otimista e acredito que podemos ser muito criativos com novos formatos de avaliação. P. Deve-se manter a avaliação nestes meses de confinamento, ou focar o apoio emocional?
R. Talvez seja preciso mudar a natureza da avaliação, mas insisto em que é importante mantê-la para poder acompanhar a evolução do aluno. Se não fizerem isso, os professores se tornarão cegos, e também é uma forma de conseguir que os alunos não se desconectem.
P. Você criticou que não haja uma maior colaboração público-privada para confrontar a crise educativa pela covid-19.
R. A inovação educacional exige a colaboração entre o público e o privado, e na Espanha há uma cultura de confrontação entre o público e o privado. Parece que a educação é só coisa do Governo, e é preciso que a sociedade se envolva e contribua com ideias criativas. As empresas também têm que tomar partido e propor soluções, por exemplo, para as práticas dos alunos de Formação Profissional. O futuro do país depende de como se administre esta crise educativa.
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