AVALIAÇÃO EM LARGA ESCALA DE HABILIDADES NÃO COGNITIVAS DE CRIANÇAS E JOVENS

CARTA ABERTA À COMUNIDADE ACADÊMICA E AOS REPRESENTANTES DE

SECRETARIAS E ÓRGÃO DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO SOBRE AVALIAÇÃO

EM LARGA ESCALA DE HABILIDADES NÃO COGNITIVAS DE CRIANÇAS E

JOVENS

A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) vem

manifestar seu repúdio à adoção e a institucionalização de uma avaliação em larga

escala de habilidades não cognitivas de crianças e jovens, no âmbito de iniciativas de

avaliação em larga escala em curso no Brasil.

Trata-se de rejeitar a adoção, como política pública, do programa de medição de

competências socioemocionais, denominado SENNA (Social and Emotional or Noncognitive

Nationwide Assessment), produto de iniciativa do Instituto Ayrton Senna em

parceria com a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento

Econômico).

Essa perspectiva está colocada na medida em que se tem a presença do Ministério da

Educação (MEC) apoiando a realização de seminários em que tal proposta foi

divulgada, além de parceria firmada entre Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão ligado ao MEC, e o Instituto Ayrton Senna

(IAS) para a criação do Programa de Formação de Pesquisadores e Professores no

Campo das Competências Socioemocionais.

A consideração de que o desenvolvimento de crianças e jovens extrapola a dimensão

cognitiva e o reconhecimento de que no contexto escolar são trabalhadas atitudes e

valores – fato esse reconhecido e trabalhado pelos profissionais da educação há muito

tempo nos currículos e nas escolas – não autorizam a proposição de tomar aspectos

relativos ao desenvolvimento socioemocional dos estudantes como objeto de

avaliação em larga escala.

As ações e estratégias que balizam as políticas e, consequentemente os exames, não

são neutras nem destituídas de valores, mas correspondem e apontam para um ideal

de sociedade que precisa ser democraticamente debatido. As questões da avaliação

são questões de currículo e, portanto, uma arena política, ideológica, cultural e de

poder.

No campo da psicologia, características socioemocionais costumam ser tratadas como

“traços de personalidade” ou “traços de caráter”. Na área da educação tem-se

observado certa variação terminológica, na medida em que há estudos em que é

adotada a expressão “características socioemocionais” e outros, que ao se

apropriarem de expressões mais recorrentemente empregadas pelos economistas,

tais como “competências socioemocionais” ou “habilidades socioemocionais” têm

preferido o emprego de “habilidades não cognitivas”. Essas distinções são necessárias

para situar que campo de conhecimento está balizando a proposição de testes.

Outra consideração importante diz respeito ao histórico da ANPEd na luta pela

educação pública e democrática. E, nesse sentido, questiona-se o que significa uma

instituição privada definir o “conteúdo da educação” por meio de avaliações. No Brasil,

por um lado, avançamos no acesso à educação, mas, por outro, há um avanço da

privatização do público e da naturalização das perdas da democratização da

educação.

Com base nessas considerações pondera-se que:

– as dimensões política e ideológica são constitutivas da avaliação, ou seja,

é uma atividade que traz inerente às suas finalidades e procedimentos a

afirmação de valores, que representam projetos educacionais e sociais.

Que valores são afirmados por meio dessas avaliações? A quem cabe

defini-los?

– o estabelecimento de uma hierarquia valorativa, pretensamente universal

e imparcial, expressa a desconsideração da desigualdade social

econômica e a diversidade cultural da sociedade brasileira, bem como as

diferenças entre os sujeitos, o que possivelmente representa a

naturalização de valores oriundos das classes mais favorecidas

socioeconomicamente. O que se busca é a padronização desses valores?

– as avaliações em larga escala vêm se constituindo como uma das

principais estratégias de consecução de uma lógica de gestão da

educação que, em nome da promoção do desenvolvimento dos alunos,

recorre à comparação de seus níveis de proficiência e à sua classificação

e premiação. O que poderá resultar da avaliação de habilidades

socioemocionais: premiação daqueles alunos que se conformarem aos

valores estabelecidos? Segregação e discriminação daqueles que não

apresentam as habilidades tomadas como as necessárias para uma

sociedade “melhor”? Quem decide sobre qual é a “melhor sociedade” são

os elaboradores dos itens dos testes?

– é conhecido o potencial que avaliações externas à escola, em larga

escala, de condicionarem e conformarem o currículo escolar. O que

teremos agora: a intensificação e ampliação desse controle e

conformação, abarcando um quadro disciplinar de competências

socioemocionais tidas como desejáveis?

– corre-se o risco de rotular e estigmatizar crianças e jovens por não se

saírem bem nos testes socioemocionais, culpabilizando-os pelo fracasso,

abstraindo fatores contextuais, sejam suas condições de escolarização,

seja seu capital econômico, social e cultural. Em consequência, não se

estaria afirmando preconceitos a respeito de determinados estudantes?

– O desenvolvimento socioemocional ou socioafetivo é, assim como o

cognitivo, um processo de construção do sujeito, intermediado por

questões sociais, culturais, ambientais que não pode ser medido por meio

de itens de testes de larga escala. O que se intenta é torná-lo mensurável

e quantificável para apoiar classificações?

Em conclusão, a Anped considera inadequada e inaceitável a adoção de uma

avaliação em larga escala de habilidades socioemocionais de crianças e jovens, no

âmbito de iniciativas de avaliação em larga escala da Educação Básica, uma vez que

poderá vir a reforçar a seletividade e exclusão, escolar e social.

Rio de Janeiro, 06 de novembro de 2014.

Maria Margarida Machado

Presidente da ANPEd

 

 

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