A avaliação formativa e a realidade das salas de aula

 

A avaliação formativa e a realidade das salas de aula

Enílvia Rocha Morato Soares

Não é necessariamente uma novidade afirmar que avaliar formativamente requer o olhar atencioso, a observação sistemática e a análise rigorosa do professor sobre o desempenho de cada estudante, a fim de que seu trabalho seja organizado e desenvolvido em atendimento às demandas evidenciadas. A essa retórica não há grandes contestações. Uma prova disso é a inserção desse discurso em grande quantidade de documentos que orientam o trabalho pedagógico das escolas que compõem diferentes redes de ensino, bem como sua incorporação por parte da maioria dos professores, mesmo quando suas práticas não coadunam com tais entendimentos.

Não é também uma novidade admitir que são grandes e numerosas as dificuldades enfrentadas pelos professores para planejar e operacionalizar um trabalho que, entre outros aspectos, conte com um processo avaliativo que possibilite a todos aprender continuamente. Não se trata de um acaso. O modo seletivo e competitivo que constitui as bases de uma sociedade capitalista, como é o caso da nossa, incide sobre o trabalho escolar dificultando, quando não impedindo, que os recentemente nela admitidos, ou seja, os filhos das classes populares, se beneficiem dos saberes por ela veiculados. São as sutis artimanhas da ideologia neoliberal que, sem perder o rótulo de democrática, sustentam esse modo de organização social ao manter exclusos do acesso ao conhecimento, os menos favorecidos.

No entanto, isso não acontece passivamente. Lutas em sentido contrário se mostram pertinentes e urgentes. A prática da avaliação formativa, mesmo em situações adversas, é uma delas.

Um forte argumento utilizado pelos professores para justificar o uso de avaliações padronizadas com propósitos classificatórios, é a grande quantidade de estudantes com os quais trabalham. Segundo eles, não há tempo hábil para conhecer as reais condições de aprendizagem de cada um dos estudantes e trabalhar atendendo às particularidades de cada um deles. Homogeneizar instrumentos e procedimentos avaliativos, bem como adotar critérios igualmente uniformes para a análise ou “correção” dos mesmos seria, para muitos deles, o caminho encontrado para contornar tal situação.

Visto que as más condições de trabalho dos professores, entre elas trabalhar com turmas superlotadas, têm, como já dito, propósitos previa e socialmente estabelecidos, sendo, o principal deles, selecionar e manter a atual divisão de classes, o primeiro passo é posicionar-se frente a essa realidade, definindo que tipo de sujeito se quer formar: para a exploração e adequação ao atual modelo social ou para a emancipação e transformação desse contexto?

A consciência, por parte do professor, do seu papel social de ensinar para o exercício da cidadania autônoma impulsiona, como deve ser, a luta em busca de melhorias das condições de trabalho sem, no entanto, desconsiderar o proveito que se pode extrair dos avanços já conquistados, em benefício dos estudantes. Isso implica dizer que, se hoje temos turmas numerosas, deve-se, entre outras coisas, à grande ampliação do acesso dos mais pobres à escola ocorrida nas últimas décadas, conquista histórica desse segmento. Valhamo-nos, então, dela, rumo a novas transformações.

Investir esforços no uso da avaliação formativa, mesmo quando a quantidade de estudantes constitui um dificultador, indica ser um bom caminho nessa direção, uma vez que é essa a função avaliativa que impulsiona progressivos avanços nas aprendizagens. Mas como isso é possível quando o professor trabalha com 40 alunos ou mais em uma mesma turma?

Antes de mais nada é necessário esclarecer que ensinar a todos implica atender às necessidades específicas de cada um dos estudantes, mas não significa lidar ou ensinar a cada um deles separadamente. É possível (parece mesmo aconselhável diante da realidade de nossas salas de aula) que o professor atenda a grupos de estudantes, sem prejuízo do trabalho desenvolvido junto a eles. O diagnóstico permanente das condições de aprendizagem de cada estudante – tarefa integrante do processo avaliativo formativo – possibilita a organização de agrupamentos que permitem ao professor atendê-los sempre que necessário e aos estudantes aprenderem entre si. Seja por estarem em condições de aprendizagem comuns ou diferenciadas, os estudantes aprendem mais e melhor estando juntos, se ajudando. Além do conteúdo escolar trabalhado, essa forma de organização da sala de aula possibilita ainda a aprendizagem da cidadania coletiva e solidária, imprescindível à construção de uma sociedade menos desigual e mais justa.

Vale lembrar que a avaliação diagnóstica viabilizadora dessa organização requer o acompanhamento sistemático dos estudantes pelo professor e essa também não é uma atividade simples quando a quantidade de aprendentes transcende o desejável. O registro frequente das impressões acerca de cada um deles constitui valioso recurso que pode auxiliar no cumprimento dessa tarefa. Além disso, os dados anotados pelo professor constituem ricas informações para a busca das intervenções apropriadas ao atendimento dos estudantes em sala de aula, o que possibilita concretizar o processo avaliativo formativo.

Os obstáculos que se interpõem à prática da avaliação formativa se agigantam quando os sujeitos que propõem a superá-los o fazem individualmente. Isso significa que, assim como os estudantes se auxiliam mutuamente, os profissionais da educação também se fortalecem quando atuam conjuntamente. Analisar a realidade social e escolar (incluindo o desempenho de cada estudante) visando sua melhoria, implica trabalho colaborativo entre todos os que a vivenciam, o que requer o envolvimento dos estudantes e seus familiares. Quem pode melhor dizer sobre os estudantes senão eles mesmos e ou seus familiares? Reunir forças e conhecimento acerca do processo educativo e sobre a avaliação que o favorece e democratiza são fatores capazes de minimizar os entraves socialmente impostos, incluindo os colocados pela desproporcional relação entre o número estudantes e professores.

Caminhar na contramão de uma organização social cujas oportunidades, embora proclamadas acessíveis a todos, privilegia os já privilegiados, não inclui facilidades. A complexidade das dificuldades com as quais os professores se deparam na tentativa de fazer uso da avaliação formativa, entre elas o número excessivo de estudantes por sala de aula, exemplifica o quão perseverantes precisam ser os esforços em direção contrária. Fazer dessas dificuldades um desafio requer vigor e determinação que se alimentam da convicção quanto às contribuições que a educação, munida da avaliação formativa emancipatória, pode oferecer para a construção de um mundo mais ético, humano e fraterno. São, portanto, esforços que valem muito a pena.

 

 

 

 

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