A educação escolar em instituições de privação de liberdade:

direito ou mérito?

Enílvia R. Morato Soares

            Compreender os reflexos da educação formal oferecida no presídio regional de São João Del Rei (MG) na vida de egressos foi o principal objetivo de uma pesquisa desenvolvida na Universidade Federal dessa mesma localidade. Tive o privilégio de compor a banca examinadora da referida defesa, momento em que a emersão de importantes reflexões incitou a escrita deste texto.

            A relevância de tais discussões reside, de modo especial, nas tensões geradas pelo atual contexto que temos vivenciado, de forte incentivo ao encarceramento, proveniente da espetacularização da mídia e, em decorrência, do apelo da população; o que acaba rendendo altos lucros aos empresários que investem na área da segurança e votos a políticos que, de certa forma, os representam. São discursos que insistem no armamento da população e na repressão ostensiva da polícia, tornando-a cada vez mais violenta. Descarta-se, desse modo, a necessidade de se pensar formas de estender a todos o direito ao emprego, à saúde, à educação e à moradia, necessidades básicas que, quando não atendidas, induzem à criminalidade. Basta colocar no cerne do discurso a defesa da segurança, clamando pela prisão, instituição sabidamente falida.

               O Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China[1], situação que por si só já é degradante, mas que se torna ainda mais preocupante diante de problemas do sistema penitenciário, tais como a superlotação, a violação de direitos humanos, as falhas no cumprimento de procedimentos, a morosidade no julgamento dos casos, entre outros.

A aposta do Brasil é na punição, em grande parte via reclusão, reclusão esta caracterizada por marcadores sociais de raça, nível educacional e classe social. Isso significa que o encarceramento em nosso país é uma questão social. Como resolver com justiça penal o que deve ser resolvido com justiça social? Quem vai para a prisão no Brasil? Os menos abastados, porque crimes são cometidos por todas as camadas da sociedade (não declarando impostos, não pedindo nota fiscal, via transações financeiras escusas – crimes que muitas vezes não chegam sequer a ser declarados). Nossa sociedade não começa a punir os mais pobres pela prisão. Começa pela fome, falta de moradia, saúde, desemprego, escoando para a prisão.

A violência no nosso país é entendida muito mais pela subtração de bens patrimoniais do que pelo sofrimento da população que é a origem dos demais tipos de violência. Nós toleramos bem a brutalidade que se desvela por meio das desigualdades que geram a falta emprego, de acesso à educação e à alimentação,  mas não o roubo ou o furto de bens patrimoniais.

Toleramos, também com parcimônia, a prisão como ela existe: um espaço, sujo, superlotado, corrupto, com as torturas que lá acontecem. Uma instituição fora da lei, falida, que, comprovadamente, não contribui para a recuperação ou socialização dos que nela adentram. Ninguém espera que a prisão ressocialize. Não se diz: “Agora que ele foi preso, vai tomar jeito”. A sociedade, na realidade, perde sujeitos para as prisões. É essa a sensação: de perda. Se a sociedade não acredita nesse espaço, ele precisa ser repensado.

Os egressos do sistema prisional podem ser comparados a sobreviventes, uma vez que o Estado é mais uma vez omisso quando não consegue oferecer oportunidades de reintegração. Enclausura e depois não consegue acolher o egresso. Quando o Estado não faz isso, o mundo do crime o faz. O Estado pede, muitas vezes, ajuda às ONGs para oferecer emprego, porque não consegue fazer isso. Existem pesquisas que comprovam que quem oferece a maior parte dos empregos aos egressos são afetos desses antigos detentos.

Quanto à educação prisional, dados do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) atestam que 13% da população carcerária têm acesso à educação. Desses 13%, 20% estão em processo de alfabetização, o que comprova que o direito à educação não só era negligenciado antes da prisão, como continua sendo para a maior parte dos presos.

Dados dessa natureza foram confirmados na pesquisa por um dos egressos interlocutores da pesquisa:

             Porque para você estudar no presídio é mérito. Para você trabalhar é mérito. Não é direito não. Porque direito todo mundo tem. A lei  fala que você tem direito de estudar. A lei é… a lei tem que ser  correta, não é? A lei não é correta? Só que não é assim não, então     é mérito. E também quem sou eu para criticar a ideologia deles, por quê? Coloca um cara lá, dois quer estudar e três não quer. O cara tem   um monte de problema na cela… problemático, e às   vezes o cara  não que estudar, só quer atrapalhar, quer tirar o tempo. Então, assim, então eles olham mérito. Eles não olham direito. (…) Então eu tive essa oportunidade de estudar. Aí eu fiquei no presídio e estudei.   (SILVA, 2024, p. 71)

A pesquisa destaca a “importância da educação e da pedagogia social no combate à criminalidade, bem como no resgate da dignidade daqueles que se encontram reclusos e que um dia voltarão a conviver em sociedade”. (SILVA, 2024, p. 35). O autor acrescenta ainda: “

Todavia, não obstante esse entendimento uníssono no sentido  de ser a educação um instrumento de resgate à dignidade  humana e, portanto, de suma importância nos estabelecimentos  prisionais, por outro lado, tem-se como desafio identificar e aplicar      metodologias inovadoras capazes de proporcionar resultados concretos ao processo de ressocialização e consequentemente diminuir o índice de reincidência.

Dados desta e de outras pesquisas me permitem acrescentar que os desafios da escolarização nos espaços intramuros se estendem ainda à oferta dessa oportunidade a toda a população carcerária. Isso porque a educação insurge como oportunidade de qualificar o tempo de clausura, assegurando, aos que dele usufrui, o direito que lhes cabe de, conscientemente, refletir sobre a vida e a dignidade que lhe foram negadas e encontrar caminhos que tornem possível sua reconquista.        

SILVA, Getúlio Anderson. Histórias de Vida de Egressos Condicionais e a Educação Formal no Presídio: Direito ou Mérito? Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação Programa de Pós-Graduação Processos Socioeducativos e Práticas Escolaresda Universidade Federal de São João Del Rei (MG), 2024.


[1]Levantamento de informações junto ao Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) realizado no ano de 2021, com dados até julho, constatou a existência de uma população carcerária de 820.689 mil pessoas, sendo 673.614 presas em celas no sistema prisional e 141.002 mil pessoas em prisão domiciliar.

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