JC Notícias – 10/03/2022
Manutenção dos critérios tradicionais de seleção pode comprometer a efetividade dessa estratégia nas universidades do País
A adoção de políticas afirmativas pelas universidades brasileiras nas últimas décadas ampliou o acesso de indivíduos de baixa renda, pretos, pardos e indígenas ao ensino superior. No entanto, essa estratégia ainda enfrenta desafios para se consolidar no sistema de pós-graduação. A conclusão consta de levantamentos feitos nos últimos cinco anos por pesquisadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Eles analisaram editais de seleção de 2.763 programas de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) entre 2002 e 2018. Verificaram que o número de programas com políticas afirmativas cresceu 329,3% entre 2015 e 2018, de 174 para 737. Esse contingente, porém, abrange apenas 26,4% da amostra avaliada. “Apesar do crescimento dessas iniciativas, ainda há muito espaço para avançar”, diz a cientista política Anna Venturini, do Cebrap, uma das autoras dos trabalhos.
Desde o início dos anos 2000, os programas de pós-graduação investem em medidas afirmativas, seja em decorrência de decisões próprias ou por determinação de leis estaduais e resoluções das universidades. Ainda em 2002, por exemplo, a Universidade do Estado da Bahia (Uneb) estabeleceu uma política dessa natureza voltada à entrada de pretos e indígenas em seus cursos de mestrado e doutorado.
Esse movimento ganhou força a partir de 2016, quando o Ministério da Educação publicou uma portaria determinando que as instituições federais de ensino superior apresentassem propostas de inclusão de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na pós-graduação – em junho de 2020, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, revogou essa portaria, mas a decisão foi revertida dias depois. “Esse esforço continuou nos últimos anos”, diz Venturini, que desde 2014 acompanha a evolução dessas iniciativas no país. “Dados preliminares de uma nova pesquisa que estamos fazendo indicam que o Brasil tinha pouco mais de 1,2 mil programas com algum tipo de ação afirmativa em 2021”, afirma a pesquisadora, que trabalha na consolidação dessas informações – não obstante a ampla gama de análises sobre ações afirmativas na graduação nos Estados Unidos, o material sistematizado e disponível sobre essa política na pós-graduação daquele país é escasso. Desse modo, é difícil a comparação com outros referenciais.
Uma das iniciativas mais recentes ocorreu na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que em agosto de 2021 aprovou resolução determinando que seus 69 programas de pós-graduação destinassem 25% das suas vagas a candidatos pretos, pardos, indígenas e quilombolas. “Eles têm liberdade para ampliar o espectro de grupos vulneráveis”, esclarece Fernando Atique, coordenador de Integração Acadêmica da Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da universidade.
Mesmo com a portaria do MEC e as políticas adotadas pelas universidades, as iniciativas se distribuíram de forma desigual. O aumento observado até 2018 foi impulsionado sobretudo nas ciências humanas. Dos 737 programas que adotaram ações afirmativas no período, 22,9% eram dessa área do conhecimento. “As humanidades têm uma longa tradição de estudos sobre as desigualdades socioeconômicas e étnico-raciais no acesso ao ensino superior”, afirma o antropólogo Jocélio Teles dos Santos, do Centro de Estudos Afro-orientais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que não participou dos estudos. “É natural que elas sejam mais sensíveis a essas questões e invistam mais na implementação de estratégias para mitigar esse problema.”
Por sua vez, os programas de ciências exatas e da Terra, e também das engenharias, foram os que menos criaram medidas dessa natureza. “Os resultados sugerem que essas áreas, na pós-graduação, são mais resistentes às políticas de ação afirmativa”, destaca o cientista político João Feres Júnior, da Uerj, um dos autores dos trabalhos. Os reflexos dessa tendência podem ser observados no modo como as medidas foram instituídas: dos 134 programas que adotaram ações afirmativas por decisão interna, 50% são ligados às ciências humanas e apenas 1,5% às ciências exatas e da Terra.
No caso das engenharias, nenhum programa no país adotou medidas afirmativas por iniciativa própria nas últimas décadas. “Eles só o fizeram quando obrigados por leis estaduais ou resoluções das universidades”, diz Venturini. “Nesses casos, as políticas valem para todos”, completa a pesquisadora, esclarecendo que os programas têm liberdade para estabelecer normas e critérios próprios para a seleção de seus estudantes, diferentemente do que ocorre na graduação.
A resistência observada nas exatas estaria ligada ao que Venturini classifica como “cultura de conservadorismo meritocrático”. “Os processos seletivos nesses programas tendem a valorizar menos a trajetória de vida dos candidatos, baseando-se apenas na ideia de que os mais qualificados são os que obtiveram mais pontos na avaliação”, diz. “Ocorre que muitos alunos cotistas precisam trabalhar durante a graduação, o que os impede de se engajar em atividades valorizadas pelos programas quando da avaliação para ingresso no mestrado e doutorado, como iniciação científica, participação em grupos de pesquisa e eventos acadêmicos.”
Essa lógica, segundo ela, é bastante presente nas ciências exatas, o que as torna mais resistentes a políticas desenhadas para corrigir desigualdades no ensino superior. “Muitos coordenadores de programas de pós-graduação que entrevistei disseram não se importar com a cor ou origem dos candidatos, mas se eles eram capazes de acompanhar o desenvolvimento dos cursos”, diz a cientista política. “Nesse sentido, a adoção de ações afirmativas prejudicaria ‘os candidatos com mais mérito’.”
O sociólogo da educação Adriano Senkevics, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), acrescenta que essas áreas “estão ligadas a setores elitizados do ensino superior, os quais, historicamente, são mais reativos a mudanças em seu campo”. Para ele, não dá para esperar que as mudanças se materializem por iniciativa dos programas. “É preciso que elas sejam instituídas pelos órgãos centrais das universidades ou por legislação.”
Em seus estudos, Venturini e Feres Júnior identificaram resistência semelhante ao cruzarem os dados sobre políticas afirmativas com os conceitos obtidos pelos programas na última avaliação quadrienal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), usada para aferir a qualidade dos cursos de mestrado e doutorado do país e nortear a distribuição de bolsas e verbas para pesquisa. Os que receberam notas 6 e 7, as mais altas, responderam por 11,5% das iniciativas de ações afirmativas. No caso daqueles com notas 3 e 4, esse número foi de 71%.
A relutância dos programas mais bem avaliados, segundo Venturini, pode estar ligada à preocupação de que esse tipo de política comprometa sua qualidade e seu status, devido à eventual necessidade de ampliação dos prazos para defesa de teses e dissertações, aproveitamento menor dos estudantes e impacto de suas publicações. “Até o momento, porém, não há evidências de que mudanças nos critérios para admissão de estudantes na pós-graduação tenham impacto negativo no desempenho dos programas ou na avaliação quadrienal da Capes.”
De modo geral, dos 737 programas que adotaram políticas afirmativas nos últimos anos, 63,9% o fizeram por meio do sistema de cotas, em que um percentual das vagas disponíveis é reservado para determinados grupos. Os estudantes pretos, pardos e indígenas foram os que mais se beneficiaram dessas medidas. Algumas iniciativas também contemplaram pessoas com deficiência, refugiados, transexuais e travestis. É o caso da UFBA, que em 2017 aprovou uma política de ação afirmativa voltada a transgêneros em seus programas de pós-graduação.
Contudo, ao analisar essas estratégias em mais detalhes, Venturini constatou que, em muitos casos, a adoção de ação afirmativa pouco alterou o processo de avaliação. Os beneficiários de cotas e candidatos regulares são submetidos às mesmas etapas no processo de seleção. “É comum candidatos de grupos minoritários serem eliminados nos estágios iniciais por conta da exigência de proficiência em línguas estrangeiras, por exemplo”, diz Jocélio dos Santos, da UFBA.
Ele cita o caso da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP), quando da criação de sua pós-graduação em direitos humanos. “O edital estabelecia o exame de proficiência em língua estrangeira como eliminatório na primeira etapa do processo seletivo, de modo que, dos 61 alunos que se candidataram às vagas reservadas, apenas quatro passaram no exame de idioma.”
A FD-USP está corrigindo esse problema. Ana Elisa Bechara, vice-diretora da instituição, informa que em 2021 a faculdade iniciou um projeto piloto com 20 vagas extras para pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência. “Também as provas de proficiência em idioma estrangeiro deixaram de ser eliminatórias”, ela diz. “Os candidatos reprovados no teste poderão refazê-lo até o exame de qualificação, desde que tenham sido aprovados nas demais etapas do processo seletivo.” A faculdade trabalha ainda em parcerias com estruturas da própria USP e entidades estudantis para oferecer cursos de idioma gratuitos a esses grupos.
Segundo a socióloga Rosana Heringer, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “a manutenção dos critérios tradicionais de seleção pode comprometer a efetividade de estratégias originalmente pensadas para ampliar o acesso de grupos vulneráveis à pós-graduação”. Adriano Senkevics completa: “A pós-graduação no Brasil está tendo de se preparar para receber um público diferente daquele com o qual estava acostumada e precisa ter em mente que as barreiras enfrentadas por indivíduos de baixa renda, pretos, pardos e indígenas não são removidas apenas com a criação de cotas”.
Jocélio dos Santos sugere que os programas diminuam a nota de corte das provas de proficiência para indivíduos que se candidatam pelo sistema de cotas. “Na Unifesp”, diz Ricardo Bertolla, pró-reitor adjunto de Pós-graduação e Pesquisa da instituição, “adotamos parâmetros mais adequados às realidades das comunidades que nos procuram na pós-graduação”. Um avanço nesse sentido, segundo ele, foi reconhecer o português como língua estrangeira para candidatos surdos e indígenas.
Mas há um problema: é praticamente impossível fazer alguns cursos de pós-graduação sem um conhecimento mínimo do inglês, avalia Fernanda Estevan, professora associada da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Quase toda a bibliografia usada em economia, por exemplo, baseia-se em livros e artigos escritos nesse idioma, a maioria sem tradução para o português”, diz. “Por essa razão, não adianta eliminar a prova de proficiência sabendo que o estudante será exposto ao inglês desde o início do curso.”
Estevan explica que as métricas de avaliação dos programas são internacionalizadas, baseadas na publicação de artigos em revistas estrangeiras de alto impacto, em colaborações com pesquisadores e instituições de outros países, além de estágios de pós-doutorado no exterior. “É claro que as instituições precisam investir em estratégias que corrijam desigualdades históricas no sistema de pesquisa nacional, mas não é simples remar contra a maré em relação ao que as agências de fomento e a própria comunidade científica exigem.”
Na avaliação de Heringer, porém, muitos candidatos estão preparados para fazer a pós-graduação sem proficiência em inglês. “Não vejo o domínio de qualquer idioma como indicativo de qualificação para ingressar na pós-graduação, mas como algo que deve ser incluído na formação dos indivíduos ao longo do curso”, comenta.
Alguns programas, como os do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), deixaram de aplicar provas de proficiência na seleção de novos estudantes, oferecendo-lhes prazo maior para que comprovem o domínio de idiomas estrangeiros. “Procuramos priorizar a qualidade dos projetos de pesquisa”, afirma a socióloga Bárbara Geraldo de Castro, coordenadora da pós-graduação do instituto. Medidas como essas têm atraído cada vez mais esses estudantes para a pós-graduação, sobretudo pretos e pardos. “O número de inscritos nos nossos programas via ação afirmativa cresce desde 2016”, diz Castro. Na sua avaliação, o principal desafio envolve as medidas de permanência.
A ausência dessas estratégias constitui um desafio à consolidação das ações afirmativas na pós-graduação, especialmente em um cenário de redução de recursos para bolsas e projetos de pesquisa. “Muitos cursos exigem dedicação exclusiva”, destaca Heringer. “Como esses estudantes, quase todos economicamente vulneráveis, podem se manter sem bolsa?” A estratégia usada no programa de pós-graduação em educação da UFRJ foi a de submeter todos os candidatos aprovados a um único edital, no qual são avaliados de acordo com critérios que levam em conta não apenas seu desempenho durante a seleção, mas também sua condição socioeconômica e se é cotista ou não. “Tentamos avaliar o mérito dos candidatos e ao mesmo tempo considerar sua trajetória de vida.” O problema, segundo ela, é que, muitas vezes, para um novo estudante conseguir uma bolsa, é preciso esperar um outro concluir o curso.
O IFCH-Unicamp procura priorizar os cotistas por meio de dois sistemas de distribuição. “Alguns programas se baseiam apenas na avaliação da situação socioeconômica dos candidatos, outros separam os classificados em duas listas e distribuem os auxílios alternadamente para o primeiro colocado no processo geral e para o primeiro entre os cotistas, e assim por diante”, explica Castro. A estratégia gerou tensões à época de sua implementação. “Muitos não cotistas se frustraram porque passaram entre os primeiros colocados, mas não conseguiram bolsa.” O instituto chegou a amanhecer pichado com ofensas racistas.
As políticas de permanência também envolvem estratégias para evitar que os cotistas sejam discriminados. “Estamos lutando para que esse problema não se instale na pós-graduação”, comenta Atique, da Unifesp. “Muitos candidatos temem se matricular e sofrer retaliações por serem cotistas.” A estratégia usada hoje é a de não divulgar, com destaque, a condição de cotista dos aprovados nas vagas reservadas. “Essas medidas são importantes para garantir que esses estudantes ingressem na universidade e possam concluir seus estudos.”