AS LIÇÕES ENSINADAS E AQUELAS, DE FATO, APREENDIDAS FORA DAS SALAS DE AULA: QUANDO A PUNIÇÃO DESEDUCA
(Por: Erisevelton Silva Lima – Pedagogo –Professor da SEEDF, doutor em educação pela Universidade de Brasília – UnB)
Apolo (nome fictício) estuda em uma escola pública do DF, vive com seus familiares e não apresentava quadro negativo quanto ao seu comportamento durante a trajetória escolar, até a data do evento aqui relatado. Sua mãe, educadora do sistema público do Distrito Federal, foi surpreendida com o aviso de que o filho teria que cumprir suspensão por indisciplina e desacato a um membro da equipe diretiva da escola na qual ele está matriculado. A gestão da unidade educacional alegou que o estudante estaria com um brinquedo no pátio da escola sem autorização para tal, que teria se recusado a entrega-lo para a pessoa que o abordou porque, segundo Apolo, não pertencia ao mesmo. A direção informou para a responsável que, diante dos fatos, a medida aplicada seria a sua suspensão das atividades escolares, como a mais adequada para educar o adolescente.
O relato acima, embora corriqueiro, revela algumas das contradições que permeiam o contexto escolar, especialmente quanto à função social dessa instituição e dos seus atores. As decisões da escola são tomadas, significativas vezes, sem a escuta das partes ou o direito de resposta ou de defesa, elementos bastante comuns em outros contextos. As famílias ou responsáveis são convidadas para tomarem ciência da decisão ou sentença. Sendo assim, convém lembrar que a parceria educadora que deveria ser fortalecida entre família e escola fica abalada e sob inúmeras suspeitas. Em pesquisa realizada por mim no ano de 2002, identifiquei que mais de 80% dos alunos suspensos, “convidados a mudar de escola” e reincidentes em advertências orais, eram meninos pretos ou pardos, de pais separados, moradores em áreas de alto vulnerabilidade social. Nesta mesma pesquisa, os estudantes que estudavam em escola cujos gestores haviam escutado respeitosamente os adolescentes e considerado, mesmo que parcialmente, suas versões, tinham diminuída a sensação de injustiça e ressentimento em relação à autoridade escolar.
A escola ensina e educa para além dos conteúdos presentes nos livros didáticos. As mensagens transmitidas por meio do currículo oculto, das medidas não justificadas ou mesmo repletas de subjetividades, do uso abusivo da autoridade professoral no espaço escolar, dentre outras, tornam-se elementos muito fortes para a educação e formação dessas gerações. Não estou defendendo uma escola sem regras, sem organização e sem hierarquias, ao contrário, é por acreditar no poder dessa instituição que relembro sua imensa capacidade de gerar bons resultados por meio do diálogo. Paulo Freire nos ensinou que existe enorme diferença entre falar com eles e falar a eles. Ao falar com, dá-se início ao exercício do afeto, da escuta e do momento ótimo da intervenção. No caso citado, a retirada de Apolo das atividades em classe e com a sua transferência para cumprimento da “medida socioeducativa” noutro espaço da instituição foi, no mínimo, intrigante. A exposição do adolescente aumentou e, diante disso, indago: quais as impressões e falas dos colegas de Apolo durante os 3 dias de cumprimento da “pena”? Em que o afastamento dos pares serviu para reeducá-lo diante do fato ocorrido no intervalo das aulas? Por que a mãe e o estudante não concordaram com a medida e, até que ponto a “pena” aplicada serviu para melhorar algo ou alguma coisa no contexto em que se deu o problema? Não tenho ou terei as respostas, mas refletir sobre elas é um ganho para nós humanos, ditos racionais.
Na obra Vigiar e Punir, Foucault nos lembra que a exposição pública daquele que será punido parece fazer parte da pena, representa uma forma de prestação de contas à sociedade, especialmente, para a família da vítima. Mais acertadamente o grande homem e advogado Mahatma Gandhi, espantado, disse-nos: “Foi sempre para mim um mistério o fato de alguns homens se sentirem satisfeitos com a humilhação de seu semelhante”. A escola tem meios de educar sem expor e sem humilhar; é o que se pretende sintetizar até aqui.
No desejo de trazer para este espaço outras reflexões, recordo as palavras de Cecília Meireles, naquele trecho que para mim é o tratado da liberdade: “Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que a explique e não há ninguém que não a entenda.” Quando privamos alguém do direito de defender-se, deflagramos ecos intermináveis povoados de sofrimento e sensação de injustiça.