Desafios da avaliação formativa no ensino remoto

Benigna Maria de Freitas Villas Boas

Coordenadora do Grupo de Pesquisa Avaliação e Organização do Trabalho Pedagógico – GEPA

Este texto foi escrito para ser usado em formato de podcast durante um curso sobre avaliação formativa desenvolvido pela  EAPE, no primeiro semestre de 2021

Vamos conversar sobre a avaliação formativa como a que contribui para a construção de aprendizagens por estudantes e professores. Sim, dos professores também, porque, para que os estudantes aprendam, temos de contar com as aprendizagens permanentes dos professores, que precisam estar em dia com os saberes do currículo, com as metodologias e tecnologias apropriadas, assim como com a avaliação que alavanca toda essa engrenagem. Os docentes aprendem muito com as interações realizadas em sala de aula e em toda a escola. Incluo a escola porque ela é lugar de aprendizagens, em todos os seus momentos e espaços. Por isso usamos a expressão avaliação das aprendizagens. Não apenas as aprendizagens previstas nos conteúdos curriculares, mas, também, as que resultam do convívio tão benéfico de todos. Pensemos: assim que o/a estudante chega à escola, passando pelo portão da entrada, dizendo ou não bom dia ou boa tarde ao funcionário ali presente, e sendo ou não por ele acolhido, está incorporando aprendizagens. E isso vai se desenrolando ao longo do dia e do tempo de permanência na instituição.

Aliás, proponho que passemos a falar de avaliação PARA as aprendizagens, o que significa concebê-la em constante movimento, rumo às aprendizagens, isto é, está sempre em ação. Não é um mero jogo de palavras. Estamos falando de um processo avaliativo e não de uma ação episódica.

A avaliação formativa é diferente da função somativa porque se desenvolve ao longo do trabalho pedagógico, por diferentes meios, enquanto a somativa ocorre em períodos definidos, para avaliar o que foi aprendido ao longo de um determinado tempo, como ao final de uma unidade ou de um semestre ou um ano e, geralmente, por meio de provas. Quando se adota a avaliação formativa, todas as atividades de aprendizagem são avaliativas, até mesmo a prova, que passa a ser uma atividade de aprendizagem. Na avaliação somativa a prova é um instrumento pontual de avaliação. A prova, então, pode ter propósito formativo ou somativo, dependendo dos seus objetivos.

A avaliação formativa se norteia pelos seguintes princípios: inclusão, intervenção, investigação, colaboração, continuidade e ética.

Ser inclusiva é sua marca. Dizer que a avaliação formativa é inclusiva é até um pleonasmo. Ser inclusiva significa que ela se compromete com a conquista das aprendizagens por todos os estudantes. Nenhum pode ficar para trás. Avaliação e aprendizagem são faces da mesma moeda, ou dito de outra forma, se interligam. Enquanto o processo de aprendizagem ocorre, a avaliação o acompanha para identificar se todos os estudantes estão aprendendo e o que lhes falta aprender. Pode-se dizer que a avaliação é a guardiã das aprendizagens. Por outro lado, enquanto a avaliação atua, aprendizagens não previstas poderão acontecer.

Mas, simplesmente conhecer o que os estudantes aprenderam e o que ainda não aprenderam não basta. Entra em cena a intervenção pedagógica, ao longo do processo.  Esqueçamos a recuperação de aprendizagem, porque não se recupera o que não foi aprendido. Além disso, costuma ser oferecida muito tempo depois e, geralmente, para se elevarem as notas. Não é este o espírito da avaliação formativa. As intervenções são realizadas pelo/a professor/a assim que as necessidades surgem. Este não é também um aspecto da inclusão? A não realização de intervenções pode deixar o estudante excluído das aprendizagens.  

Sendo inclusiva e interventiva, a avaliação formativa é, também, investigativa. O que ela investiga? Está atenta ao que vem dificultando ou impedindo o avanço das aprendizagens. Por isso, se diz que os professores são pesquisadores da sua própria atuação.  

Todo esse processo avaliativo requer colaboração entre docentes, estudantes, coordenadores pedagógicos, gestores e pais/responsáveis. O professor responsável pela turma ou pela disciplina não pode ficar desamparado. O trabalho coletivo apresenta melhores resultados quando é desenvolvido em grupo. Isso vale também para os estudantes: por meio de atividades realizadas em grupo muitas aprendizagens têm lugar e eles próprios exercitam a avaliação.

Por ser contínua, a avaliação formativa é aliada do professor e dos estudantes. Propicia a identificação das necessidades dos estudantes, facilitando o trabalho dos professores, que estão sempre em condições de apresentar aos pais a situação de aprendizagem de seus filhos. O mesmo acontece em reuniões com colegas e coordenadores pedagógicos, quando se discute o trabalho pedagógico em desenvolvimento. E mais: estão sempre formulando meios de promover as intervenções.

A ética é um princípio fundamental da avaliação. Na escola lidamos com gente em processo de aprendizagem. Não cabe a avaliação informal punitiva, segregadora, negativa e desencorajadora. Lembremo-nos de que atitudes de interesse e de disponibilidade para ajudar o/a estudante, assim como olhares de aceitação, fazem bem a qualquer um deles. Outro aspecto da ética consiste em não basearmos a avaliação em aspectos pessoais e familiares dos estudantes. Não se avalia a sua pessoa, mas o seu processo de aprendizagem. Os princípios anteriores (inclusão, intervenção, investigação, colaboração e continuidade) dão sustentação à ética.

A avaliação formativa dá uma grande contribuição ao trabalho dos professores, porque lhes mostra se devem continuar conforme o planejado ou se devem alterar e o quê.

Não nos esqueçamos do feedback. É um componente imprescindível à avaliação formativa. É um forte coadjuvante da inclusão. Para que os estudantes avancem, precisam receber constantes informações sobre seu progresso e as necessidades de melhoria.  Após a realização das atividades, merecem conhecer com que competência elas foram realizadas. Não bastam meias palavras, como: muito bem; ótimo; faça de novo; incompleto; parabéns. O que isso significa? Eles precisam saber em quais aspectos ainda não conseguiram avançar e como fazê-lo. O feedback não é feito por meio de notas. O que significa a nota 6? E a nota 9? Interessa saber o que ainda não foi aprendido. Aliás, é bom lembrar: ainda é uma palavra mágica quando se trata de avaliação formativa. Significa que, com orientação, todos avançarão.

Outro aspecto a considerar sobre o feedback: costuma ser confundido com devolutiva. Ele é mais do que isso: a simples devolução de provas ou a entrega de notas não significa que houve feedback.  

Será que assim entendida, a avaliação formativa pode ser praticada em aulas remotas? Sim, porque todas as atividades são avaliativas. Charles Hadji, professor francês, em seu livro Avaliação desmistificada, nos ensina que não há procedimentos/instrumentos próprios para a avaliação formativa. A intenção do professor é que a torna formativa.

Tenho preocupação com o fato de os estudantes, em situação de aulas remotas emergenciais, terem de receber notas e poderem ser reprovados. Qualquer tipo de classificação, como notas e reprovação, são questionáveis no trabalho pedagógico presencial. Em aulas remotas isso se agrava. Será que as experiências pelas quais estamos passando nos levarão a repensar a avaliação na escola?

Não defendo a aprovação automática. Não é disso que falo. Ao nos posicionarmos em favor das aprendizagens e de uma avaliação que a apoie, não podemos aceitar que os estudantes avancem nos anos escolares sem aprender. Estaríamos ferindo o princípio da inclusão, que não significa apenas estar dentro da escola, mas, também, ser beneficiado por ela. O abandono de recursos classificatórios possibilitará a organização de um autêntico trabalho pedagógico, isto é, voltado exclusivamente para a conquista das aprendizagens por todos.

Pensemos agora com carinho na avaliação formativa durante as aulas remotas emergenciais, em desenvolvimento no momento. Digo com carinho porque ela poderá ser de grande valia. Fomos pegos de surpresa e não nos preparamos para enfrentar tal situação. Como ponto de partida, pensemos nos seus princípios. Como fica a inclusão? Que providências tomar para que as aprendizagens de todos se efetivem? Sabemos que há um grande número de estudantes sem condições de acesso à internet e a um computador ou celular. Esta constatação já é um exemplo de exclusão. Como avaliar as aprendizagens dos que estão acompanhando as aulas, na perspectiva da inclusão? Por meio de quais atividades? Muitas vezes nos preocupamos com procedimentos avaliativos: as atividades desenvolvidas é que serão avaliadas. Cada professor/a criará as mais adequadas ao seu componente curricular. Uma atividade que poderá contribuir é a autoavaliação, se praticada devidamente, isto é, sem atribuição de nota pelo estudante e pelo professor, respeitando a individualidade dos estudantes, e sem divulgar as informações por eles fornecidas. Além disso, não será um meio de avaliação da pessoa do estudante. Que isso fique bem claro. Inicialmente, um roteiro poderá ser encaminhado pelo/a professor/a. Mas, o ideal é que, com o tempo, o estudante escreva livremente. Uma ocasião uma estudante do Curso de Pedagogia me disse que eu não deveria ler sua autoavaliação por ser de seu foro íntimo. Disse-lhe tratar-se de um recurso pedagógico no qual ela não deveria incluir informações que não pudessem ser lidas por mim. Vejam, é uma oportunidade de discutirmos com nossos estudantes o papel dos diferentes procedimentos de avaliação.

A observação é um dos meios que favorecem a avaliação formativa. Se a falta de convívio com os estudantes a torna limitada, o que pode ser observado e como, para que eles se sintam seguros e acompanhados?

Pensemos, também, nas singularidades da avaliação dos estudantes em cada etapa/modalidade de ensino/componente curricular. Além das atividades que desenvolvem, quais outras são específicas em cada situação? Por exemplo: o que é próprio da educação infantil, da socioeducação, da educação profissional, da EJA etc?

Como oferecer feedback em cada situação? Há informações gerais que podem ser dirigidas a todos. De que forma isso poderá ser feito? E as individuais?

Detectadas as necessidades dos diferentes estudantes, como oferecer as intervenções? Este é um grande desafio. Certamente, serão criadas maneiras condizentes com cada etapa/modalidade de ensino.

Atividades em pares são benéficas nesse momento porque promovem interação e colaboração. Os estudantes são criativos e têm facilidade de usar os recursos da internet. Podem atuar junto aos professores para o desenvolvimento de atividades interessantes.

Que tal a construção de portfólios pelos estudantes? É uma atividade dinâmica, criativa e prazerosa.

A construção de registros reflexivos também é apropriada. Constituem-se de anotações ou narrações sobre aprendizagens desenvolvidas, aspectos considerados relevantes, articulações entre os estudos realizados. Apresentam várias vantagens, dentre elas: como o nome indica, favorecem a reflexão; constituem oportunidade para a escrita; compartilham experiências; sistematizam observações recolhidas. Em cada situação eles cumprem objetivos próprios. Os registros podem ser feitos por estudantes de qualquer idade.

Registros reflexivos e autoavaliação se complementam. Um favorece o outro. Quando o portfólio é adotado, ambos poderão nele ser incluídos.   

O que os diferencia da autoavaliação é que esta permite aos estudantes avaliarem como estão aprendendo e até mesmo criarem seus próprios objetivos. É um recurso pontual de avaliação. Os registros reflexivos se referem aos saberes/conteúdos em desenvolvimento. Podem ter como referência um tema ou uma unidade. Possibilitam a organização, a formulação e a escrita de ideias.   

Antes de finalizarmos esta conversa, deixo uma reflexão: quando as aulas presenciais forem retomadas, o processo de aprendizagem e o de avaliação terão continuidade, não devendo simplesmente “fazer parte do passado” e serem esquecidos. É importante que não se crie um hiato. O processo de avaliação terá de ser retomado. Professores e estudantes estão trabalhando muito durante as aulas remotas. Não será um esforço perdido, mas um período que propiciará muitas análises e revisões. A escola não será a mesma depois disso. Muitas lições estão sendo aprendidas.

E para finalizar, faço uma sugestão aos colegas que estão atuando em aulas remotas: mantenham um registro geral de todo o processo avaliativo durante a pandemia. Como pesquisadores da sua prática, organizem um portfólio com tudo que forem coletando. Vocês terão um rico material para divulgação ou publicação. Estamos vivendo uma experiência inusitada. Coube a vocês serem os protagonistas de parte dessa história.      

 

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