Dever de casa, avaliação e pandemia: reflexões

Enílvia R. Morato Soares

            No início desta década, quando assumi o compromisso de pesquisar o dever de casa no contexto da avaliação das aprendizagens, jamais imaginei que, 10 anos depois, uma crise sanitária mundial reforçaria como nunca a necessidade de reflexões sobre a temática. Isso porque a quarentena imposta a estudantes e professores em função da pandemia aproximou como nunca o par dialético dever de casa/avaliação.

            Diferentes lives que tratam da avaliação no ensino remoto contam com depoimentos de professores preocupados com a veracidade das informações avaliadas, uma vez que estão sendo realizadas longe de sua supervisão. Isso significa que a maior parte das atividades de aula hoje é de deveres de casa.

            Essa realidade me trouxe à tona preocupações expressas pela principal interlocutora de minha pesquisa, uma professora que à época atuava no 3º ano do ensino do ensino fundamental. Em uma de suas declarações, essa docente admitiu não dar muito valor às tarefas realizadas pelos estudantes em casa em função da desconfiança que tinha em relação à autoria das respostas às questões propostas. Ela assim se posicionou:

O dever de casa não é muito verídico, porque ele [o aluno] não estava na minha presença e eu não sei se ele fez só. Algumas tarefas eu mando: “Eu quero que faça sozinho”. Eu procuro trabalhar sempre essa questão da honestidade. Eu sempre pergunto: “Fez sozinho? Precisou de ajuda?” Algumas crianças, eu vejo que elas fazem sozinha sempre. Tem vez que eu identifico letra diferente… na tarefa deles.

Depoimentos de alguns pais colaboradores da pesquisa indicaram que as dúvidas da professora não eram infundadas. A maioria deles admitiu não consentir que os filhos levassem, para a escola, o dever de casa com erros ou incompleto. Esse contexto acabava influenciando o trabalho pedagógico desenvolvido pela professora, uma vez que o dever de casa continuava sendo utilizado diariamente sem, no entanto, contribuir para indicar aprendizagens conquistadas e ainda não conquistadas, a fim de que medidas fossem adotadas para que todos progredissem. Em outras palavras, o dever de casa não era parte de um processo avaliativo formativo, constituindo, em grande medida, uma perda de tempo.

Não se pode negar o valor da observação sistemática do desempenho dos estudantes para que a avaliação se desenvolva numa perspectiva formativa. Não há como negar também que a proximidade física entre professor e estudantes favorece sobremaneira o olhar atento do observador. No entanto, avaliar com o propósito de promover aprendizagens agrega princípios que não desconsideram a possibilidade de que, mesmo distantes, professores, estudantes e familiares se utilizem das tarefas realizadas em casa e sem o acompanhamento do professor para avaliar visando conquistar continuamente novas aprendizagens.

A ética é um desses princípios. Avaliar com ética pressupõe o compromisso político de promover aprendizagens. Isso implica respeito aos estudantes e às produções que apresentam, bem como aos seus familiares, num movimento que envolve diálogo e efetiva participação de todos. Um contrato didático construído coletivamente é parte desse processo e acordos referentes à avaliação e às tarefas realizadas fora da escola devem ser parte dele. Nesse cenário, não cabem atitudes de hierarquização, marginalização ou punição de estudantes. Assim conduzida, a avaliação se pauta por relações solidárias que visam o bem comum.  A desconfiança perde, assim, a razão de existir.

Para que tal realidade se estabeleça, faz-se necessária a superação de entendimentos ainda bastante presentes em nosso meio, que vinculam a avalição a resultado e não a processo. A ideia de que os estudantes precisam, ao final de uma determinada quantidade de estudos, comprovar que aprenderam e que essa comprovação é individual e desprovida do uso de qualquer recurso, além de seu próprio raciocínio e/ou sua memória, induz a comportamentos que visam burlar a vigilância que professores exercem sobre os estudantes a fim de evitar tais atitudes. A famosa “cola” é uma dessas formas que reforçam concepções que tomam a avaliação como meio de controle e fiscalização.  

Compreender a avaliação como aliada e não como um risco pode contribuir para dissipar dúvidas quanto à sinceridade dos estudantes e de seus familiares na feitura das tarefas realizadas sem o acompanhamento do professor. Em tempos de ensino remoto essa necessidade se acentua.

 

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