DISCIPLINA E AVALIAÇÃO FORMATIVA: um diálogo possível

DISCIPLINA E AVALIAÇÃO FORMATIVA: um diálogo possível

Enílvia Rocha Morato Soares

Para além da historicidade que condiciona o comportamento humano, é no meio social onde vive que o homem constrói sua identidade, incorporando conhecimentos e, ao mesmo tempo, criando novos modos de agir. A aprendizagem de normas, regras, preceitos e valores, formal ou informalmente instituídos, ocorre por meio da educação que se faz presente nas mais diferentes esferas da vida social, entre elas, na escola.

O propósito de alcançar os fins a que se destina, ou seja, educar, requer da escola uma organização que se desvela por meio de práticas que reclamam de seus componentes comportamentos considerados apropriados ao alcance desse fim. Organizar-se de modo a diminuir o grau de incertezas que obstaculizam, senão impedem a escola de cumprir o seu papel social de ensinar a todos se mostra, portanto, pertinente e necessário. Todo esse processo não se dá, no entanto, dissociado de interesses que, assim como acontece no contexto social em que a escola se insere, incorpora decisões a partir de perspectivas que objetivam a formação dos sujeitos para a manutenção da exploração de uma classe sobre a outra ou para a libertação da classe explorada.

A avaliação que se desenvolve no âmbito da escola cumpre importante papel para o disciplinamento de comportamentos, especialmente dos estudantes que, muitas vezes, por estarem submetidos a avaliadores encarregados de decidir sobre os rumos de sua trajetória escolar, se veem compelidos a adotar, acriticamente, comportamentos condizentes com o esperado pela escola. Nesse caso, a avaliação se mostra uma prática coativa e voltada a obtenção de uma disciplina marcadamente frágil e artificial, porque imposta vertical e unilateralmente.

Vale destacar que o receio de grande parte dos professores ao trabalhar em escolas que se organizam por ciclos reside justamente na perda do poder que lhes possibilita reprovar (leia-se punir) e, em consequência, do controle que os permite disciplinar conforme expectativas previamente estabelecidas.

Quando a prática avaliativa se reveste do propósito de conformar, ao invés de formar, não é da avaliação formativa que se está falando. Diferentemente do que se pensa, avaliar formativamente não exclui a disciplina necessária à conquista de aprendizagens. Contrário a isso, a disciplina é parte das aprendizagens que, por meio da avaliação formativa se promove. Nesse caso, construída sobre bases sólidas porque envolve um processo de conscientização quanto à necessidade da adoção de comportamentos que favoreçam o avanço das aprendizagens. Não se trata de adequar-se ao que está (im)posto, mas de criar e ou optar por modos de agir que possibilitem a progressiva apropriação e construção de conhecimentos.

Antes mesmo de explicitar como isso acontece, faz-se importante destacar que o termo “disciplina” diz respeito tanto à obediência a regras e pessoas hierarquicamente superiores, como a condutas que asseguram o bem-estar dos indivíduos ou o bom funcionamento de instituições. Ou seja, o termo disciplina pode relacionar-se à subserviência, mas também ao melhoramento pessoal e institucional. É esse último entendimento que possibilita articular a função formativa da avaliação à disciplina.

Como promover essa articulação?

Avaliação formativa pressupõe, de antemão, o diálogo fraterno e respeitoso entre avaliador(es) e avaliado(s). Requer, portanto, uma relação horizontalizada que conduz à assunção de responsabilidades por todos os envolvidos. No caso da escola, isso inclui estudantes, professores e demais profissionais que nela atuam.

Envolver os estudantes no processo avaliativo parece ser um bom início para a construção de uma avaliação que conte, entre outras coisas, com a disciplina desses sujeitos para a promoção de suas aprendizagens – propósito maior da avaliação formativa. Ao perceber-se incluso no processo avaliativo, ou seja, ao participar do planejamento e desenvolvimento da avaliação da qual faz parte, os estudantes compartilham também da responsabilidade pelos resultados dela advindos. Dito de outra forma, ao sentirem-se co-responsáveis por sua avaliação, os estudantes se percebem também comprometidos com a conquista das aprendizagens que por meio dela são favorecidas. Isso inclui o exercício da disciplina necessária para que tais conquistas se efetivem.

O olhar atento sobre o caminho trilhado rumo à construção dessas aprendizagens se mostra importante a fim de que distorções possam ser, a tempo, corrigidas ou realinhadas. Esse monitoramento implica um processo avaliativo permanente e continuado. Quando realizado pelo próprio estudante, esse controle se fortalece por contar com o sujeito principal desse processo. Ao refletir sobre o que sabe e o que foi feito para chegar a esse conhecimento, o estudante tem clareza sobre o que é preciso ser feito para aprender o que ainda não sabe. Trata-se de de um processo metacognitivo propiciado pela autoavaliação.

Metacognição diz respeito ao “processo mental interno pelo qual um sujeito toma consciência dos diferentes aspectos e momentos de sua atividade cognitiva” (HADJI, 2001, p. 103). Constitui, portanto, “atividade de autocontrole refletido das ações e condutas do sujeito que aprende” (idem). A autoavaliação privilegia esse processo, uma vez que corresponde a um olhar contínuo e crítico do sujeito sobre si mesmo e, principalmente, sobre o que faz durante o processo de aprendizagem, componente imprescindível à formação para a autonomia. A disciplina necessária ao estudo e às aprendizagens que dele decorrem tende a ser, assim, incorporada, não por meio da imposição que a torna falseada e aparente, mas por meio da conscientização que a potencializa por torná-la voluntária porque motivada por necessidades reconhecidamente reais.   

HADJI, Charles. Avaliação Desmistificada. Porto Alegre-RS: Artmed, 2001.

 

 

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