ENEM: PARA QUÊ?
Profa. Dra. Sílvia Lúcia Soares
Presenciamos, mais uma vez, a divulgação do resultado do ENEM à sociedade, da qual emergiram opiniões, principalmente da mídia, atrelando o desempenho dos estudantes à qualidade da educação brasileira. Concomitantemente aos dados obtidos, propagaram-se análises que, na maioria das vezes, estão assentadas no senso comum sem o devido trato político-pedagógico e diálogo com a realidade das escolas e dos estudantes. Além do mais, vimos também veiculados pelos meios de comunicação depoimentos de gestores da área de educação com interpretações de cunho estatístico e suposições pedagógicas expostas de forma desconexa e desgarrada de uma análise mais ampla – os condicionantes sociais, políticos e econômicos que influenciam e são influenciados pela avaliação. Posturas como essas ajudam a reforçar concepções ingênuas e desprovidas de análise mais aprofundada sobre os aspectos nocivos e excludentes da avaliação.
No cenário descrito, tornou-se evidente o quanto a busca pela eficiência e eficácia tem recolocado a avaliação no cenário educacional com ênfase em resultados e, ao mesmo tempo, sintetizado a situação atual da regulação por parte do Estado na área educacional. Nesse contexto, princípios como o da igualdade e da equidade estão sendo, paulatinamente, substituídos pelos princípios da competição, do mérito e da performance. Como assevera Hypólito (2010), a performatividade gera efeito de terror sobre o trabalho docente, equipes diretivas e sociedade por meio da neurose do accountability (prestação de contas ou, ainda, responsabilização), concretizada na padronização da avaliação que não leva em consideração a realidade dos alunos, as desigualdades sociais e de acesso às tecnologias e a informação.
Não podemos desconsiderar que tais fatos concorrem para a aceitação passiva e permissiva de uma suposta homogeneidade do sistema educacional em um país de tantas diferenças e, por outro, transforma o campo educativo em rankings dos sistemas de ensino e das escolas públicas ou privadas que são julgadas e classificadas por meio de pontuação ou valoração dos resultados. Nesse aspecto, conjecturamos que a competitividade tem gerado resultados nocivos e contribuído para classificações hierarquicamente pejorativas das escolas, dos alunos e também dos professores, pois todos são cobrados a obter resultados satisfatórios.
Na verdade, é evidente que a utilização da avaliação, como instrumento de controle e fiscalização, a tem afastado da sua função formativa, democrática e participativa que a caracteriza e assegura sua especificidade pedagógica. Advogamos que não basta apenas a divulgação e apresentação dos resultados sem considerar que o desempenho dos estudantes é mais bem compreendido e interpretado quando levantadas as informações sobre o tipo de ensino que recebem, a escola em que estudam e o contexto sociocultural do qual se originam. Resultados como os do ENEM não podem ser utilizados para o fortalecimento de interesses e finalidades políticas em detrimento de melhorias do desempenho humano e da mudança qualitativa de vida da sociedade.
Na verdade, o que “distingue o ato de examinar e o ato de avaliar não são os instrumentos utilizados para a coleta de dados, mas sim o olhar que se tenha sobre os dados obtidos” (LUCKESI, 2004, p. 4-6) e o redimensionamento a ser dado à organização do trabalho pedagógico da escola e da sala de aula. Para Freitas (2006, p. 90), “[…] medir não é avaliar, ainda que avaliar suponha algum tipo de medida.” Com isso, alerta-nos que, se vista apenas como forma de medir, a avaliação torna-se tecnicista e desvinculada do contexto social e político e correspondendo a apenas um formalismo burocrático.
Nesse sentido, em meio à parafernália de dados, não devemos nos esquecer de que a avaliação externa só tem utilidade se a escola se apropriar de seus resultados e produzir informações que possibilitem modificações no processo educativo. Se os docentes e os discentes não se apropriarem dos resultados e a eles atribuírem significados, não poderão também estabelecer o diálogo pedagógico e transformá-los em atividade de conhecimento e, assim, consolidar novas aprendizagens e relações mais proveitosas com a avaliação.
Referências
FREITAS, L. C. A “progressão continuada” e a “democratização” do ensino. In: VILLAS BOAS, B. M. de F. (Org.). Avaliação: políticas e práticas. 3. ed. Campinas: Papirus, 2006.
HYPOLITO, A. M. Políticas curriculares, Estado e regulação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 31, n. 113, p. 1337-1354, out.-dez. 2010.
LUCKESI, C. C. Considerações gerais sobre avaliação no cotidiano escolar. Entrevista concedida a Aprender a Fazer, publicada em IP – Impressão Pedagógica . Curitiba: Expoente, nº 36, 2004, p. 4-6.