MARCAS DA AVALIAÇÃO

MARCAS DA AVALIAÇÃO

Profa. Dra. Enílvia Rocha Morato Soares

Segundo Villas Boas (2008), a avaliação deixa marcas. Resta a nós, educadores, definirmos que marcas queremos deixar em nossos estudantes. Inspirada pela pesquisadora, propus ao grupo de professores de uma escola pública, para a qual fui convidada para debater sobre a temática, o seguinte questionamento: ”A avaliação deixa marcas” (VILLAS BOAS, 2008). Que marcas a avaliação deixou em você?

Em resposta a essa pergunta surgiram tristes, porém instigantes depoimentos, dentre eles, um que muito me chamou a atenção. Aparentemente emocionada, uma professora relatou que, ao cursar o 5º ano de escolaridade (antiga 6ª série), foi submetida a uma prova de recuperação de Matemática, em que precisava obter nota 4,75 para ser aprovada. A nota obtida foi, no entanto, 4,74. Resultado que, segundo o parecer do professor da disciplina, não era suficiente para sua aprovação, uma vez que, para isso, faltava um centésimo da nota requerida. Mesmo desolada, a professora relatora do fato declarou ter conseguido extrair positividades desse episódio. Disse que, após o ocorrido, nunca mais precisou “correr atrás” de pontos, pois se ocupava de obtê-los antecipadamente, a fim de evitar a reincidência da reprovação.

Quanto à decisão do professor pela reprovação da estudante, ficam questionamentos de difícil resposta: como medir 4,74 e ou 4,75 de conhecimento? A que equivale um centésimo de conhecimento? Qual o critério adotado para a notação de um instrumento avaliativo, que nesse caso foi uma prova, suficientemente seguro para fazer com que um estudante reveja o conteúdo de todas as disciplinas cursadas ao longo de um ano letivo por ter obtido um centésimo a menos do que foi requerido em uma dessas disciplinas?

Uma vez impossibilitada de responder a tais questionamentos (precisaríamos, para isso, recorrer ao professor avaliador), resta-me a alternativa de tecer algumas reflexões sobre a reprovação e seu potencial de camuflar o poder elitizante da escola mantendo-a sob o rótulo de democrática.

A reprovação é exercida, particularmente, pelos professores. Segundo Jacomini (2010), muitos deles acreditam que têm, na reprovação, uma poderosa arma capaz de fazer com que os estudantes se dediquem aos estudos. O que precisa ser entendido é que, em grande parte dos casos, a reprovação não decorre de falta de dedicação. O efeito da reprovação pode, nesses casos, repercutir de modo contrário, desestimulando ainda mais o estudante que apresenta necessidades específicas de atendimento. Além disso, o prazer de aprender não pode ser substituído pela barganha estudo-nota, sob pena de condicionar a busca pelo conhecimento a alguma forma de compensação.

A crença de que a reprovação possibilita uma nova chance de aprendizagem ao estudante também é desmistificada pela autora (idem) quando alerta para o fato de que o alcance dos objetivos formativos vincula-se às condições oferecidas pela escola e às condições sociais e materiais dos estudantes para a conquista de aprendizagens e não ao fato de ele ser reprovado.

Não servindo aos propósitos para os quais se acredita ser válida, a reprovação serve apenas para impedir que todos progridam initerruptamente pelos anos escolares, cabendo aos estudantes e às suas famílias a responsabilidade pelos êxitos ou insucessos ao longo da trajetória escolar.  Minimiza-se, assim, a responsabilidade da escola e da sociedade quanto ao compromisso social que lhes cabe de assegurar a todos o direito de aprender. Estratégia do projeto neoliberal de educação que permite, no máximo, a acessibilidade de todos à escola, mantendo, por meio de dispositivos menos perceptíveis, restrita a alguns (em geral os já favorecidos cultural e economicamente), as aprendizagens por ela possibilitada. Dar com uma mão e tirar com a outra é, segundo Vasconcellos (2014), o modo burguês de acolher o povo que ascendeu massivamente à escola.

Outro marcante relato proferido no encontro diz respeito a mais um dano causado pela avaliação. Segundo uma das docentes presentes, ao receber de sua então professora a redação que havia produzido, já “corrigida”, ouviu dela considerações suficientemente perniciosas para impedi-la de voltar a redigir novamente. Foi dito pela professora depoente: “depois disso, nunca mais consegui escrever”.

Mesmo tendo se referido a um instrumento formal de avaliação, foram as análises orais da professora que suscitaram, na então estudante, sentimentos de incapacidade e de baixa autoestima. As marcas foram, portanto, impressas por meio da avaliação informal.  Freitas et al (2009, p. 27) advertem, a esse respeito, que  “a parte mais dramática da avaliação se localiza aí, nos subterrâneos, onde os juízos de valor ocorrem”. Pela sutileza dos modos como acontecem as observações, comentários, gestos e olhares de que o estudante é alvo constituem mecanismos capazes de definir percursos escolares (VILLAS BOAS, 2008).  Hadji (2001) também demonstra preocupar-se com a avaliação informal ao alertar para o quão devastadores podem ser os efeitos das mensagens implícitas sob o sentido aparente das palavras. Esse parece ser o caso da professora autora da redação depreciada.

Vale destacar que nenhum dos depoimentos ou comentários proferidos no encontro relacionou avaliação à conquista de aprendizagens, parceria que caracteriza um processo avaliativo formativo. Mesmo quando foi apontado como positivo o fato de a reprovação ter servido para evitar sua reincidência, o foco foi a obtenção de notas e não as aprendizagens que, provavelmente, resultariam em notas mais elevadas. Todo esse contexto desvela incompreensões que destituem a avaliação do seu caráter formativo, podendo produzir marcas negativas que, se não perenes, duradouras o suficiente para obstaculizar a construção de aprendizagens que integram um processo educativo emancipador e libertador.

 

Referências

FREITAS, Luíz Carlos de; SORDI, Mara Regina Lemes de; MALAVASI, Maria Márcia Sigrist; FREITAS, Helena Costa Lopes de. Avaliação Educacional: Caminhando pela contramão. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009.

HADJI, Charles. Avaliação desmistificada. Porto Alegre-RS: Artmed, 2001.

JACOMINI, Márcia Aparecida. Educar sem reprovar. São Paulo: Cortez, 2010.

VASCONCELLOS, Celso dos S. Avaliação Classificatória e excludente e a inversão Fetichizada da Função Social da Escola. In: FERNANDES, Claudia de O. (org.). Avaliação das Aprendizagens: sua relação com o papel social da escola. São Paulo: Cortez, 2014.

VILLAS BOAS, Benigna Maria de Freitas. Virando a escola pelo avesso por meio da avaliação. Campinas-SP: Papirus, 2008.

 

 

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