NOTÓRIO SABER: afinal, quem é o profissional da educação?
Dra. Sílvia Lúcia Soares
António Nóvoa, reitor honorário da Universidade de Lisboa e candidato às últimas eleições presidenciais de Portugal, ao analisar a Reforma Curricular do Ensino Médio no Brasil e a adoção do notório saber com critério para a escolha de docentes, deixa claro que esse modelo foi copiado do programa Teachers For America, do George Bush, e afirma ter sido ele um desastre.
A entrevista desse estudioso à Carta educação, no dia 28 de março de 2017, aguçou em mim a vontade e a necessidade de reforçar a reflexão a respeito da função do professor, posta nesse momento, em contexto tão adverso e na contramão das lutas históricas dos professores pela valorização dos profissionais da educação no Brasil.
Partimos da premissa de que toda profissão carece de saberes específicos para adquirir o reconhecimento de estatuto profissional. Para tanto, recorrendo a Guathier (1998, p. 20), que afirma que: “uma das condições essenciais a toda profissão é a formalização dos saberes necessários à execução das tarefas que lhe são próprias”, indagamos: quem é o profissional do ensino? O que diferencia o educador do sujeito com “notório saber”?
Infelizmente, as respostas a essas indagações não são promissoras. Pelo contrário, elas deixam claras as fronteiras e os limites da profissão docente e dos fatores que a circunscrevem, advindos de reformas educativas de cunho neoliberal que pactuam com a desvalorização e o silêncio dos profissionais da educação. Além do mais, essas reformas reforçam a concepção conteudista e pragmática da docência, negando ser ela uma atividade profissional, a qual exige conhecimentos específicos para seu exercício ou, no mínimo, a aquisição das habilidades e dos conhecimentos vinculados às atividades nela exercidas (VEIGA, 2009).
Partindo desse entendimento, gostaríamos de dizer que não basta ter notório saber para ser educador, visto que os saberes dos profissionais do ensino dizem respeito a dimensões bem mais amplas e complexas. Afirmamos que o notório saber como critério para a seleção de professores ancora-se na visão tradicional, historicamente fundada na perspectiva transmissiva, cujo pressuposto é que no processo educativo há os que ensinam e os que aprendem. Ensinar, nessa lógica, equivale a transmitir um saber. Diferentemente, em outra perspectiva, temos a concepção do ensino de forma integradora, sustentado não apenas em razões ideológicas ou políticas, mas históricas e culturais, com uma leitura mais ampla e alargada dos saberes.
Essas ponderações nos levam ao entendimento de que ser educador exige domínios de conhecimentos, habilidades e competências específicas e necessárias a um campo de trabalho, as quais estão diretamente ligadas à formação profissional. O trabalho docente, por possuir características próprias e específicas que lhe dão contorno, exige, pois, uma base de saberes para o ensino que caracteriza a profissão e assegura a identidade do professor, a qual advém da significação social da profissão, dentro de um processo dinâmico de construção sócio histórica em permanente evolução.
O que difere o trabalho docente dos demais trabalhos sociais é a presença de um objeto humano, o que modifica inevitavelmente a sua natureza, visto que o humano não nasce humano, ele torna-se humano pelo convívio com determinações simbólicas, rituais, celebrações e gesto, mas sempre junto com o outro. Como nos ensina Arroyo (2000), ensinar a outro e ensiná-lo a se humanizar (ARROYO, 2000). A essência da docência está no outro e envolve as diversas dimensões a ele subjacentes: subjetiva, objetiva, social, histórica, psicológica, etc.
Dessa forma, para além de conhecimentos específicos, o docente tem que possuir conhecimentos pedagógicos, relacionados às teorias e princípios do ensino e das aprendizagens, tais como: conhecimento dos alunos e dos processos cognitivos do desenvolvimento e das aprendizagens; conhecimentos macro da escola e de todas suas dimensões; da relação entre o professor e aluno e entre a escola e a comunidade; da interdisciplinaridade entre as áreas afins; dos aspectos políticos, históricos, filosóficos e técnicos do ensino; dos fins da educação e; dos objetivos do ensino. Como nos alerta Shulman (2005b), o importante não é o conhecimento em si, mas os princípios que o fundamentam e a compreensão das categorias de estrutura substantiva de seus conceitos básicos e de seus princípios, com foco na forma como eles são apreendidos.
Portanto, a adoção do notório saber para seleção de docentes nos instiga a revisitar Tardif e Lessard (2005) ao afirmarem que, embora o ofício de professor seja antigo, nossos conhecimentos sobre a docência ainda são restritos, devido a diversos fatores, destacando entre eles seis preconceitos que conduzem à compreensão equivocada de que para ensinar basta: (i) conhecer os conteúdos, na lógica que para ensinar basta transmitir um conteúdo; (ii) ter talento, na perspectiva que o ensino se realiza pela arte; (iii) ter bom senso, no entendimento de que para ser professor não é necessária a presença de um conjunto de conhecimentos e habilidades específicas; (iv) ter intuição, ou seja, seguir uma espécie de comando interior, sem considerar a deliberação racional; (v) ter experiência, fortalecendo a lógica pragmatista da docência; (vi) ter cultura, afirmando vastos conhecimentos para desempenhar as atividades de ensino. Infelizmente, devemos admitir que esses preconceitos são ainda ativos e presentes e continuam prejudicando o processo de profissionalização do docente e impedindo a valorização do profissional que nele atua. E mais, são reforçados pelas políticas educacionais implantadas, no caso, a Reforma Curricular do ensino médio.
Nossas vivências têm nos mostrado que o ato educativo baseado no conhecimento do conteúdo, no bom senso, na experiência, na intuição, no talento e na cultura não tem contribuído, de forma alguma, para uma educação democrática e de qualidade. Para ser professor é necessária formação específica, embora não seja essa a preocupação de nossos legisladores!!!!
Por fim, reformas que apregoam, em seu contexto, a desvalorização do professor não podem ser aceitas sem a análise minuciosa de seus intentos e o entendimento dos objetivos obscuros a elas subjacentes. Pelo contrário, exigem, sim, a apropriação teórico-política mais substancial e análise crítica mais consistente sobre as consequências da implantação dessas políticas.
Fiquemos atentos, pois as políticas impostas de forma arbitrária, atropelada e sem discussão não podem provocar em nós postura fatalista e imobilizante. Saramago (1997) afirma que existe somente um modo de perenidade capaz de sobreviver à precariedade das existências humanas e das suas obras: segurar o fio da história e com ele bem agarradinho avançar para o futuro, ou seja, a história se faz na e pela história, por meio da ação do homem, do sujeito que a constrói.
Não podemos ficar calados diante a banalização de nossa profissão e o desmonte da democracia na educação. Cabe a nós decidirmos: escrevemos a história ou somos arrastados por ela?
Referências
ARROYO, M. G. Ofício de mestre: imagens e autoimagens. Petrópolis: Vozes, 2000.
GAUTHIER, C. et al. Por uma teoria da pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o saber docente. Ijuí: Unijuí, 1998
SARAMAGO, J. Deste mundo e do outro. Lisboa: Editorial Caminho, 1997.
SHULMAN, L. S. Conocimiento y enseñanza: fundamentos de la nueva reforma. Profesorado. Revista de currículum y formación del profesorado Granada-España, ano 9, n. 2, 2005b, p. 1-30.
TARDIF, M.; LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis: Vozes, 2005.
VEIGA, I. P. A. A aventura de formar professores. Campinas, SP: Papirus, 2009.
A Educação Profissional já passa por um processo bastante sério que é possuir todos os professores dos Cursos Técnicos Bachareis e tecnologos, esses profissionais apesar de terem uma formação de curso superiores da parte específica de seus referidos cursos,não possuem licenciatura e agora serão também ser formação de nivel superior, selecionados pelos notórios saberes.