O CURSO DE PEDAGOGIA: DISCREPÂNCIA ENTRE A TEORIA ENSINADA NA FACULDADE E O EXERCÍCIO EFETIVO DA PROFISSÃO
Profa. Dra. Sílvia Lúcia Soares
A reportagem “Alunas de pedagogia contam que realidade da profissão pode assustar: na teoria, tudo é fácil”, veiculada pelo G1, no dia 21/06/2017, enumera aspectos nevrálgicos tanto na formação quanto na profissão do pedagogo. Os pontos elencados na reportagem merecem uma análise mais acurada e aprofundada, entre os quais destacamos: a) função do pedagogo, b) desarticulação entre teoria e prática no processo de formação; c) distanciamento do trabalho pedagógico desenvolvido na universidade com os referenciais da Educação Básica; d) desvalorização do professor.
Sabemos que a discussão sobre a função do pedagogo não é recente e muito menos simples. Na verdade, ela advém das indefinições complexas relacionadas à Pedagogia e não apenas ao curso de Pedagogia. São diversas as concepções em relação à identidade da Pedagogia: ora considerada como campo científico; ora como um curso; como tecnologia da educação ou, ainda, ciência aplicada. Tais dúvidas geram indefinições quanto à sua especificidade, sua identidade e também quanto ao campo de atuação do profissional pedagogo.
Com a extinção do Curso de Magistério em nível médio, foi atribuída ao curso de Pedagogia a formação dos docentes da Educação Básica. Tal fato fez com que as questões acima mencionadas se tornassem ainda mais complexas. Ao observarmos o percurso histórico do movimento político de reformulação do referido curso, deparamos com diferentes concepções em relação à sua função. Diante desse impasse, a última reformulação, as Diretrizes Curriculares para o Curso de Pedagogia, definidas pela Resolução n.1, de 15 de maio de 2006, do Conselho Nacional de Educação, instituiu o curso de Pedagogia como licenciatura que se destina à formação de professores para a educação infantil e os anos iniciais do ensino fundamental. Complementarmente, também ao desenvolvimento de competências para o ensino nos cursos de nível médio, na modalidade normal; ao ensino na educação profissional na área de serviços e apoio escolar; às atividades de organização e gestão educacionais; e às atividades de produção. Como podemos observar, diante de tantas atribuições dadas ao curso com a Resolução, permaneceu a antiga dúvida: o curso de Pedagogia deve formar o especialista em educação ou o pedagogo docente?
Essa questão está longe de ser elucidada com a devida clareza. Em pesquisa realizada sobre a formação de professores (Soares, 2014), averiguamos, no curso, que o desdobramento de uma organização curricular que buscava assegurar, em seu contexto, tanto a formação do especialista como do docente, não conseguia formar, com a devida qualidade, nem o pedagogo para atuar em diferentes espaços educativos, nem o docente para as séries iniciais do Ensino Fundamental e, muito menos, o professor das matérias pedagógicas.
Nesse processo, outro aspecto agravante foi detectado, como a desarticulação entre a teoria e prática. Observamos a convivência da universidade com uma visão dicotômica de conhecimento, a partir da qual a teoria e a prática são concebidas como componentes isolados que ocorrem em momentos distintos. Desconsidera, dessa forma, que todo conhecimento teórico se articula aos saberes da prática, ao mesmo tempo (re)significando-os e vice-versa, sendo essa relação um ato que se supera continuamente, gerando, assim, novos conhecimentos e outros significados inéditos. Entendemos que, para se garantir a articulação entre a teoria e a prática, o ato de ensinar e de aprender deve ser intermediado pelos problemas sociais e a realidade concreta da escola e da sala de aula e pela articulação entre os conhecimentos e os saberes pedagógicos.
No entanto, essa compreensão é algo ainda distante do processo de formação do pedagogo. Na pesquisa realizada (Soares, 2014), verificamos que, no curso de formação, a inserção do estudante na realidade da escola de Educação Básica constitui-se em atividade restrita a algumas disciplinas, muitas vezes sustentada pelo interesse de alguns professores, sem estar, portanto, referendada em projetos sólidos de formação. Dessa forma, essa atividade não se reveste de um processo de qualificação no qual tanto as escolas e seus professores qualificam a formação dos licenciandos quanto a universidade contribui para a qualificação das escolas, seus projetos e professores. Ademais, a formação de professores para a Educação Básica não tem privilegiado a escola como espaço de formação inicial e continuada e, muitos menos, a pesquisa como metodologia de ensino e de aprendizagens.
Há de considerarmos que a dicotomia entre pesquisa/ensino acarreta uma forte hierarquia entre os saberes acadêmicos. Com isso, supervalorizam-se os saberes específicos da área de formação em detrimento dos denominados pedagógicos, que são marginalizados e considerados como dispensáveis no processo de formação de professores. A organização curricular dos cursos não se articula à das séries iniciais do Ensino Fundamental, pois é regida pela lógica das disciplinas estanques, desconsiderando a responsabilidade que tem o professor, em início de escolarização, de integrar conhecimentos e saberes de diversas áreas. Destacamos também que a carga horária não é proporcional entre a dimensão profissional, teórica e prática, os fundamentos e metodologias da formação. Soma-se a isso, o desconhecimento de muitos professores do curso sobre os anos iniciais do Ensino Fundamental, devido a muitos não possuírem formação pedagógica e, muitos menos, experiências na Educação Básica.
À crítica sobre o baixo salário do pedagogo, acrescentamos que, para além do aviltamento salarial, podemos citar ainda a precariedade das condições de trabalho, as jornadas excessivas de trabalho, o reduzido número de horas de trabalho de apoio à docência (para o preparo das aulas, elaboração de material didático e acompanhamento das aprendizagens dos alunos e a inexistência de planos de carreira). Estes são aspectos relevantes para a qualidade do desempenho, muitas vezes desconsiderados nos processos de avaliação docente.
Ademais, inserem-se, no contexto da desvalorização dos professores, as políticas de formação que atribuem aos docentes responsabilidades que reforçam os aspectos técnicos da profissão e intensificam as tarefas a eles destinadas. Acrescenta-se a isso a regulação que o Estado tem exercido sobre o trabalho do professor, por meio dos sistemas de avaliação, estabelecendo uma relação unívoca entre o nível de desempenho do aluno e a qualidade da formação do professor.
Por último, porém não menos importante, está a questão da expropriação do trabalho do professor pelas políticas avaliativas atuais. No atual contexto, por um lado, o trabalho pedagógico do professor vem sendo submetido a uma crescente desqualificação, pelo fato de ele estar sendo excluído das funções de concepção e de planejamento de seu próprio trabalho. Por outro, ele tem reduzida sua capacidade de controle sobre suas atividades, uma vez que a regulação externa, ao adentrar o espaço da sala de aula, passa a determinar o nível de rendimento dos alunos e a qualidade do trabalho docente.
Sem dúvida, precisamos retomar a discussão sobre a formação de professores no Brasil, indo às raízes das questões políticas que a configuram e que são, ao mesmo tempo, impeditivas da construção de projetos de formação emancipadores e capazes de construir novos profissionais. Caso contrário, depoimentos como dessas alunas do Curso de Pedagogia serão constantes no universo da formação e da atuação docente.
Referência
SOARES, Sílvia Lúcia. Avaliação para as aprendizagens, institucional e em larga escala em cursos de formação de professores: limites e possibilidades de interlocução. Tese de doutorado. Brasília: FE/Universidade de Brasília, 2014.
A seguir, transcrevemos a reportagem.
Alunas de pedagogia contam que realidade da profissão pode assustar: ‘na teoria, tudo é fácil’
Apesar de gostarem de dar aula, jovens relatam discrepância entre teoria ensinada na faculdade e exercício efetivo da profissão.
Por G1
21/06/2017
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Estudantes de cursos de pedagogia afirmam que existe um distanciamento grande da teoria aprendida na faculdade em relação à rotina da profissão. “Na universidade, tudo é lindo, fácil de aplicar. Mas quando comecei a trabalhar na área, me assustei um pouco. Pensei que não fosse aguentar”, conta Ana Caroline Amilevicius, estudante do 5º semestre de pedagogia na Anhanguera (SP).
“Em aula de escolas da prefeitura ou do estado, por exemplo, são muitas crianças por sala. E em qualquer instituição, o professor precisa lidar com alunos de diferentes temperamentos, que podem estar agitados ou cansados. Vejo como um desafio a ser vencido”, completa.
Para Nina Feres, aluna da graduação na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), uma forma de conseguir aproximar a teoria da prática é fazer estágio. “É uma fase muito importante na formação do profissional. Mesmo se for para aprendermos o que não fazer. Isso porque a realidade da sala de aula é muito diferente da teoria pura dos livros”, diz.
Nina sentiu falta, nas aulas de pedagogia, de ter noções mais aprofundadas do conteúdo do ensino fundamental I. “Eu tive dois semestres de matemática, ciências naturais e ciências humanas, mas a abordagem foi muito superficial quanto ao conteúdo. As aulas focavam mais nas estratégias gerais”, afirma. Ana Caroline não esperava ter esse tipo de matéria na faculdade, mas notou que, de fato, é importante ter essa formação. “Eu não imaginava ter aula de geografia, por exemplo. Mas aprendi que a educação das crianças não é só a parte lúdica”, conta.
O professor Paulo Fraga, coordenador do curso de pedagogia do Mackenzie, afirma que, no Brasil, a graduação nessa área é conhecida por ser muito teórica. “A gente tenta mostrar na faculdade os desafios que se impõem em sala de aula. As universidades estão buscando se aproximar das escolas, para minimizar o estranhamento dos recém-formados quando começarem a exercer a profissão”, afirma.
Sobre a reputação da profissão, Ana Caroline diz que já esperava os baixos salários, mas não a falta de reconhecimento da sociedade. “O professor ensina valores, desfralda a criança, ensina a comer sozinha. É um trabalho que vai além do ensino escolar, forma também um cidadão. E nem assim é valorizado”, afirma.
Nina conta que seu salário é mais alto que a média para a profissão porque trabalha em uma escola privada bilíngue. Mas reconhece a falta de incentivo à carreira de pedagogia. “É um absurdo o quanto os professores de escolas públicas ganham. Isso me entristece. Mas o que me dá forças é mostrar que não só damos aula, como também formamos indivíduos, cidadão, questionadores, que vão agir na sociedade”, completa.