ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO E MILITARIZAÇÃO DAS ESCOLAS: IMPLICAÇÕES
Profa. Dra. Enílvia Rocha Morato Soares
A escola constitui instância social que serve de base mediadora e articuladora de, pelo menos, dois tipos de projetos: de um lado, o projeto político de sociedade e, de outro, os projetos pessoais dos sujeitos envolvidos na educação (SEVERINO, 1998). A premissa de mediar e inter-relacionar diferentes projetos impõe considerar não só as condições subjetivas para o desenvolvimento do projeto escolar, mas também as condições objetivas que, embora não se dissociem das subjetivas, assumem particularidades que o condicionam e, muitas vezes, o determinam.
O privilégio de pesquisar em uma escola situada no interior de uma Unidade de Internação socioeducativa me oportunizou vivenciar uma realidade em que, as condições objetivas e subjetivas diferem das demais unidades de ensino em variados e diferentes aspectos. Um deles diz respeito à ostensiva vigilância exercida sobre os estudantes a fim de manter a ordem e a disciplina não só na escola, mas em toda a Unidade. O que se viu nesse espaço foi a sobreposição de medidas de segurança sobre as questões de cunho pedagógico, impedindo a escola de cumprir seu papel social que lhe cabe de ensinar a todos. Em outras palavras, mais importante que aprender, o esperado desses estudantes era um comportamento coerente com as normas pré e unilateralmente estabelecidas para serem acriticamente seguidas, sob ameaça de penalizações.
Ao me deparar com o anúncio de que algumas escolas públicas do DF seriam militarizadas, essa experiência me sobreveio de imediato, trazendo junto o temor de que a lógica disciplinar coativa baseada no modelo punitivo-repressivo experienciado no local pesquisado se estenda às demais escolas. Isso porque os agentes de segurança que atuam nas Unidades de Internação exercem função que em muito se assemelha ao que está sendo requerido dos policiais militares que adentrarão as escolas: combater a violência por meio do estabelecimento e cobrança do cumprimento de normas rígidas de comportamento.
Sem desmerecer a importância de um ambiente pacífico e ordeiro para o desenvolvimento das atividades escolares, chama atenção a inversão de ordem para o tratamento da problemática. Ao invés de se investir na construção de um projeto educativo que possibilite aos estudantes um ensino vivo, vinculado aos problemas e às questões que permeiam a realidade visando compreendê-la e nela atuar com criticidade e autonomia; esforços se voltam ao intento de modelar comportamentos que, assim, se mostram estereotipados porque impostos externa e autoritariamente. Esse entendimento compromete a função formativa emancipadora conferida à escola, substituindo-a pela preparação de sujeitos acríticos e subservientes, aptos a, no máximo, adaptarem-se ao meio social tal como ele se encontra, sem maiores questionamentos. Mesmo a disciplina, que nesses moldes se obtém, não garante a redução de atos violentos. Por não se assentar em bases sólidas, torna-se aparente, artificializada e propensa a voltar ao “normal” ou à indisciplina em situações nas quais a vigília se mostrar menos ostensiva. É bastante comum a reincidência da violação de regras por sujeitos que já foram anteriormente punidos.
Isso implica dizer que a violência hoje instalada no âmbito da escola não se extingue por meio do patrulhamento coercitivo comumente exercido pelos profissionais militares. A conquista da disciplina necessária ao desenvolvimento do trabalho pedagógico e, em consequência, para a construção de aprendizagens, objetivo maior da escola, passa, necessariamente, pela vivência de relações éticas e democráticas asseguradas pela participação responsável e pelo respeito mútuo entre alunos, professores e demais profissionais que nesse espaço atuam. Promover o diálogo reflexivo acerca das diferentes situações que acontecem diariamente na escola e fora dela, incluindo os atos que violam direitos e, por isso, constituem violência, é tarefa dos profissionais da educação e parte do processo formativo que a eles cabe conduzir.
Não se trata de abdicar da parceria dos profissionais da segurança no processo de escolarização. Contrário a isso, a articulação entre trabalhadores de diferentes áreas permite a socialização de conhecimentos e o debate de questões que podem promover melhorias nos diferentes setores. Isso inclui, necessariamente, a análise de fatores geradores de violência que extrapolam os muros escolares, como é o caso das profundas desigualdades econômicas, culturais e sociais que assolam nossa sociedade.
É de responsabilidade e competência dos profissionais da educação, junto com e à comunidade escolar, planejar e desenvolver o trabalho pedagógico objetivado pelo coletivo. O Combate à violência e à indisciplina que obstaculizam a conquista e o progresso contínuo das aprendizagens deve compor o projeto construído por esses sujeitos, contemplando propostas concretas que venham auxiliar o ensino que se pretende efetivar, sendo, ele próprio, o principal meio para que comportamentos facilitadores da construção de aprendizagens componham o cenário escolar. O movimento dialético aí implícito incide tanto sobre os projetos pessoais, como sobre o projeto da sociedade que, mediados pelo projeto escolar, garante ganhos em todas essas instâncias.
SEVERINO, Antônio Joaquim. O projeto político-pedagógico: a saída para a escola. Revista de Educação AEC. Ano 27, n° 107, abr/jun -1998, p.81-91
Parabéns pela análise!