REPENSANDO A AUTOAVALIAÇÃO

Repensando a autoavaliação

Benigna Maria de Freitas Villas Boas

 

Tive a oportunidade de examinar há alguns dias uma prova de uma disciplina do ensino médio que me fez refletir sobre a urgência de as escolas organizarem momentos com seus docentes para estudo e reorganização do processo avaliativo, incluída a discussão sobre procedimentos de avaliação. É uma prova composta de dois itens objetivos, com conteúdos não relacionados, e o terceiro e último que solicita: “Faça uma alta-avaliação sobre o seu desempenho nesse bimestre. Dê uma nota de 0 a 10. Justifique sua resposta”. Note-se que ele faz parte da prova. Sobre este item é que vamos nos debruçar.

Em primeiro lugar, fiquei que me indagando: “alta-avaliação” terá sido erro de digitação? A prova terá sido digitada por outra pessoa e não pelo/a professor/a? Se tiver ocorrido erro de digitação, não caberia ao professor/a revê-la antes da sua aplicação? Se o engano for mesmo a escrita da palavra, a situação é bem séria. Mas, sério mesmo é o fato de se exigir do estudante que faça sua autoavaliação como último item da prova e se atribua uma nota. Este é o segundo aspecto a ser considerado. Para isso, lanço mão do livro Virando a escola do avesso por meio da avaliação, de minha autoria, publicado pela editora Papirus em 2008, no qual dedico quatro capítulos à autoavaliação, tamanha é a sua importância para o desenvolvimento da avaliação formativa. Transcrevo o trecho abaixo:

“A autoavaliação é um componente importante da avaliação formativa. Refere-se ao processo pelo qual o próprio aluno analisa continuamente as atividades desenvolvidas e em desenvolvimento, registra suas percepções e sentimentos e identifica futuras ações, para que haja avanço na aprendizagem. Essa análise leva em conta: o que ele já aprendeu, o que ainda não aprendeu, os aspectos facilitadores e os dificultadores do seu trabalho, tomando como referência os objetivos da aprendizagem e os critérios de avaliação. Dessa análise realizada por ele novos objetivos podem emergir. A autoavaliação não visa à atribuição de notas ou menções pelo aluno; tem o sentido emancipatório de possibilitar-lhe refletir continuamente sobre o processo da sua aprendizagem e desenvolver a capacidade de registrar suas percepções. O seu grande mérito é ajudar o aluno a perceber o próximo passo do seu processo de aprendizagem. Cabe ao professor incentivar a prática da autoavaliação pelos alunos, continuamente, e não apenas nos momentos por ele estabelecidos, e usar as informações fornecidas para reorganizar o trabalho pedagógico, sem penalizá-los” (Villas Boas, 2008, p. 51-52).

Outro trecho também contribui para a compreensão do tema em questão:

“A autoavaliação tem sido empregada, muitas vezes, segundo a lógica da avaliação classificatória. Nessa perspectiva o professor elabora um roteiro a ser respondido pelos alunos, nos momentos por ele escolhidos, geralmente ao final de um determinado período de tempo ou de uma atividade. Costuma-se solicitar que o aluno se atribua uma nota. Uma possível justificativa para esse modo de agir pode ser a intenção do professor de que cada aluno se responsabilize pelos resultados da sua aprendizagem. Assim, não há o que reclamar. Contudo, observa-se que nem sempre os alunos sabem para que ela serve e o que será feito com as informações por eles fornecidas.

Na avaliação formativa a autoavaliação passa a ter outro sentido. Hadji (2001, p. 101-102) entende que ela engloba dois aspectos: 1) a regulação da ação de aprendizagem, incluída, nesse âmbito, a auto-regulação; e 2) a metacognição. Vejamos, inicialmente, a sua compreensão de regulação da ação de aprendizagem. Para isso torna-se necessária a distinção entre auto-notação e autocontrole. A auto-notação, por meio da qual o aluno se atribui uma nota ao examinar seu desempenho, já é uma forma de auto-balanço. É a oportunidade que ele tem de analisar o que produziu, a partir dos parâmetros definidos pelo professor. Porém, o auto-balanço acontece quando a ação de produção está terminada. Já o autocontrole, considerado ‘figura privilegiada da auto-avaliação’, pelo autor, é um componente natural da ação, isto é, um seu constitutivo, traduzindo-se por uma observação contínua. É como se o sujeito constantemente se olhasse ao agir, a partir de um ‘modelo ideal ou de um sistema de normas’ (idem, p. 102). O autocontrole ‘corresponde a uma avaliação contínua, frequentemente implícita, algumas vezes quase inconsciente’ (ibidem). É um ‘olhar crítico sobre o que se faz enquanto se faz’, olhar que expressa o sistema interno de orientação próprio de cada um e cuja mobilização pode ter o efeito de modificar esse sistema. O autor esclarece que o termo controle não tem o sentido negativo atribuído por aqueles que opuseram fortemente a avaliação a controle.

Assim, considera o mesmo autor, a autoavaliação já está presente na atividade do aluno constantemente, como autocontrole. É natural querer que o aluno desempenhe um papel que naturalmente já é seu. Torna-se necessário colocar a avaliação instituída e instrumentalizada a serviço do autocontrole espontâneo e permanente, para que se ajude o aluno a construir uma ‘instância avaliativa’, afirma ele, cada vez mais adequada.

A autoavaliação só o é quando cumpre o papel de auto-regulação contínua e ‘não sob suas formas que correspondem a ‘efeitos’ de auto-notação, até mesmo de auto-balanço’, completa Hadji (idem, p. 102). Para que a avaliação seja formativa, dois aspectos são importantes: a ação e o sujeito que age. Por esse motivo, a regulação operada pelo professor é apenas um estepe que só deve intervir quando os mecanismos de auto-regulação do aluno estão bloqueados (idem, p. 103). Contudo, o professor pode atuar para instrumentalizar de modo mais claro o autocontrole, orientando o aluno a analisar suas atividades e a formalizar essa análise por meio da produção de instrumentos de auto-balanço e auto-notação, sem perder o sentido da regulação. Cabe-lhe, também, acompanhar todo o processo.

As contribuições de Hadji nos permitem concluir que a autoavaliação como auto-notação insere-se na perspectiva da avaliação classificatória, voltada apenas para notas, aprovação e reprovação do aluno.

Compreendido o primeiro aspecto que compõe a auto-avaliação, a regulação da ação de aprendizagem, vejamos o segundo aspecto apontado por Hadji (op. cit., p. 103), para quem a primazia atribuída à autoavaliação pela avaliação formativa implica a necessidade de desenvolvimento de atividades de metacognição. O autor entende que metacognição é o processo mental interno pelo qual uma pessoa toma consciência dos diferentes aspectos e momentos da sua atividade cognitiva. Assim atuando, a pessoa toma distância dos conteúdos envolvidos pelas atividades cognitivas em andamento. Por isso, diz ele, a metacognição é sinônimo de atividade de autocontrole refletido das ações e condutas do sujeito que aprende. Seu papel é reconhecido no êxito das aprendizagens. Por meio da autoavaliação atinge-se o desenvolvimento das atividades cognitivas como forma de melhoria da regulação das aprendizagens, pelo aumento do auto-controle e pela diminuição da regulação externa do professor. Almeja-se prioritariamente o desenvolvimento da autonomia do aluno. Por isso, a autoavaliação como processo de auto-controle é uma habilidade a ser construída, principalmente em cursos de formação de educadores. Essa construção pessoal é que permitirá ao aluno refletir, analisar e desenvolver as atividades por meio do exame crítico da sua produção, a fim de progredir. Todo o sentido daquilo que se denomina de autoavaliação está nisso, ensina Hadji (op. cit., p. 103).

A autoavaliação constitui, portanto, um processo metacognitivo” (Villas Boas, 2008, p. 52-54).

O fato de ter sido solicitado aos estudantes em uma prova objetiva que avaliassem o seu próprio desempenho e se atribuíssem uma nota desvirtuou o objetivo da autoavaliação, dando-lhe o caráter de avaliação classificatória. Ela foi inserida na prova, pela qual se obteve nota. Pode-se imaginar que, nesse contexto, os estudantes não se sentiram à vontade para escrever sobre seu processo de aprendizagem.

Se a autoavaliação é um “olhar crítico sobre o que se faz enquanto se faz”, ela é desenvolvida constantemente. Seu registro é que pode ser realizado em momentos acertados entre professores e estudantes. Porém, tanto o professor como os estudantes precisam ter clareza sobre como serão usados esses registros e para que servirão. Ética e respeito são ingredientes imprescindíveis.

Minha preocupação de sempre permanece: os professores em formação não aprendem a avaliar e não têm a oportunidade de verdadeiramente se autoavaliarem. Até quando teremos notícia dessa situação? Marilena Chauí oferece seu entendimento de autoavaliação: “momento da consciência de si mediada pela consciência do outro (no caso, o professor)” (Chauí, 1980, p. 31). Esse momento deveria estar presente na educação básica e superior como direito dos estudantes.

 

Referências

CHAUÍ, Marilena de Souza. Ideologia e educação. Educação & sociedade, ano II, n. 5, jan., p. 24-40. São Paulo: Cortez, Cedes, 1980.

HADJI, Charles. Avaliação desmistificada. Porto Alegre: Artmed, 2001.

VILLAS BOAS, Benigna M. de F. Virando a escola do avesso por meio da avaliação. Campinas, SP: Papirus, 2008.

 

 

 

2 respostas para “REPENSANDO A AUTOAVALIAÇÃO”

  1. Professora que situação! Sempre que faço palestras digo que o instrumento prova torna-se público e por ele todos na escola respondem quando chega às mãos dos estudantes; em razão disso argumento que seria necessário que docentes permitissem outros olhares sobre a tal prova, afinal segue com o nome da escola e implica na imagem de todos que dela fazem parte, fiquei estarrecido e triste com o que chegou ás sua mãos, temos muito o que fazer não é?

     
    1. Com certeza, Eri. Tudo o que tem sido produzido sobre avaliação não tem contribuído para o seu avanço. O GEPA continua tendo um longo caminho a percorrer.

       

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

cinco × três =