REPENSANDO O PERCURSO DA AVALIAÇÃO PARA AS APRENDIZAGENS

REPENSANDO O PERCURSO DA AVALIAÇÃO PARA AS APRENDIZAGENS

Benigna Maria de Freitas Villas Boas

Publicado em http://gepa-avaliacaoeducacional.com.br

 

Reorganizando meu escritório, encontrei o seguinte livro de 1967, segunda edição: A escola primária: princípios gerais; direção de classe, de autoria de John U. Michaelis e Enoch Dumas, publicado pela editora Ao Livro Técnico, do Rio de Janeiro. Trata-se de uma cuidadosa revisão da edição de 1953. Este livro foi dedicado por seus autores a “todos que têm um papel chave no preparo de professores para crianças”. No prefácio à edição brasileira a tradutora afirma que ele é “particularmente recomendável a professores e alunos de Teoria e Prática da Escola Primária em cursos de formação de professores de ensino normal, professores de Prática de Ensino em cursos normais, orientadores de professorandos, técnicos de educação primária, orientadores pedagógicos em geral e mesmo professorandos”. Também administradores escolares e professores já em regência de turma tirarão proveito de sua leitura para renovação e domínio de técnicas.

O livro é organizado em 12 capítulos. Como acontece até hoje, depois de tratar de vários temas relacionados ao trabalho escolar, o penúltimo deles é dedicado à “avaliação da aprendizagem das crianças”. Quando não é o último, é o penúltimo capítulo de livros.

O livro contém 370 páginas e sua redação se dirige ao professor. Vejamos trechos do livro.

“Definição de avaliação

O processo de determinar a quantidade e a qualidade do progresso e da soma de conhecimentos adquiridos, baseados em objetivos claramente definidos, é chamado avaliação. A avaliação implica em (sic) fazer julgamentos referentes ao valor e à adequação da escolaridade, do ajustamento ou do desenvolvimento do aluno. Muitos recursos são utilizados a fim de colecionar dados para a avaliação. A qualidade do trabalho das crianças é determinada relacionando-se os dados obtidos com a medida dos objetivos de ensino. A avaliação eficiente e ampla, cobrindo todos os aspectos do desenvolvimento da criança, está relacionada aos objetivos de um programa específico da escola e baseada no emprego de uma larga variedade de instrumentos para colher dados válidos. O diagnóstico de pontos fortes e fracos na aprendizagem das crianças é a principal utilidade da avaliação na Prática de Ensino. Através dos processos de avaliação você pode reunir as informações necessárias ao planejamento do trabalho relacionado às necessidades específicas das crianças, à organização de grupos, ao aperfeiçoamento do planejamento de unidades, ao enriquecimento do programa e ao relato aos pais. Além disso, você pode usar os dados reunidos para fazer sua própria avaliação no seu papel de professor.

Não só o professor deve julgar sua própria eficiência, mas também ensinar as crianças a serem auto-avaliadoras (sic). Isto é parte do processo de ajudar os alunos a se tornarem cada vez menos dependentes da orientação do professor e, como consequência, cada vez mais independentes com respeito à sua própria educação.”

Embora a definição de avaliação se restrinja ao nível das aprendizagens, sem estabelecer articulação com a avaliação do trabalho da escola por ela mesma (denominada de avaliação institucional) e a avaliação em larga escala, observa-se que havia a intenção de alargamento da sua compreensão ao se incluírem os alunos nesse processo. Já havia a proposta de prática da autoavaliação, ainda hoje tão difícil de ser incorporada. Outras dimensões da avaliação, além da técnica, não foram mencionadas.

Nesse capítulo chama a atenção o item: ASPECTOS COOPERATIVOS DA AVALIAÇÃO, a seguir.

“A avaliação não é tarefa para uma só pessoa fazer, de maneira única. Como professorando, você precisará discutir com o professor-cooperador ou o supervisor de Prática de Ensino os seus planos para reunir informações sobre os alunos. Uma vez que, sozinho, não será responsável pelo programa total da avaliação, você e seu professor-cooperador necessitarão compartilhar descobertas e interpretações e planejar a ação futura.

Considere também a necessidade de planejar e realizar procedimentos de avaliação com os próprios alunos. Estabeleça os padrões ou objetivos, cooperativamente, incentive a auto-avaliação (sic) e a avaliação de grupo e prepare os planos para atividades posteriores.

Os pais também tomam parte na avaliação. Eles notam as aptidões das crianças para ler oralmente […] Sua capacidade de avaliação é aguçada através de conferências com o professor, que reserva tempo para discutir a amplitude dos objetivos e expectativas para cada criança em particular, de acordo com os níveis de desenvolvimento. Discuta com seu professor-cooperador que parte você desempenhará no fazer os pais participarem do programa de avaliação de sua turma”.

Percebe-se a ênfase dada à avaliação como processo do qual participam estudantes e pais. Ainda hoje este é um aspecto ao qual a escola ainda não tem conseguido dedicar atenção. Além disso, é significativo o entendimento de que o professor não é o único responsável pela avaliação, assim como ela não é realizada de uma única forma. Também expressa está a ideia da necessidade de a avaliação ser planejada.

“Continuidade da avaliação

Enquanto ensinar, faça os julgamentos, à medida que observa as crianças no trabalho. Como resultado, você apressará ou retardará o andamento da atividade, dará aula individual, estimulará os não participantes a tomarem parte, desenhará figuras ilustrativas no quadro, referir-se-á a um cartaz, anotará itens a serem considerados em planejamento futuro e assim por diante. Quando a atividade ou aula chegar ao fim, você avaliará com as crianças o que foi aprendido ou que trabalho foi feito e então planejará as próximas etapas.

No fim do dia letivo, será proveitoso discutir o que foi realizado. Agradará às crianças verificar que realizaram algumas coisas que valeram a pena, embora ainda tenham muito mais a fazer. Elas serão também capazes de relatar a seus pais as atividades do dia […].

No fim de uma unidade curta […] você avaliará a aprendizagem das crianças e fará os registros adequados. O mesmo acontecerá perto do fim de unidades de trabalho longas. Estas são avaliações culminantes que devem ser consideradas juntamente com outras, feitas durante a unidade.

Periodicamente, aplique testes especiais para obter informações a serem acrescentadas às colhidas de maneira menos formal. Embora tais exames sejam bastante valiosos, não os empregue sozinhos como guias dignos de confiança para decisões importantes, mas confirme seus resultados por meio de avaliações feitas através da inspeção de outros meios, como o do trabalho diário das crianças”.

Este último parágrafo é especialmente importante porque nas décadas de 1950 e 1960 não se podia imaginar que rumos a avaliação tomaria nos Estados Unidos e em outros países. Ela deixou de ser um processo construído pelo professor e seus estudantes para se transformar em aplicação de testes padronizados e voltados para a criação de classificações. Em muitas situações, de um processo interno à escola e à sala de aula passou a ser uma atividade mecânica e organizada por empresas que prestam consultoria. A recomendação dos autores é perfeita para nossos dias: não utilização de provas como único procedimento de avaliação, mas cruzar seus resultados com os obtidos por outros meios. Tornou-se mais cômodo o uso exclusivo de provas porque elas facilitam o trabalho do professor e os estudantes se preparam para os testes em larga escala. O uso excessivo de testes padronizados tem impedido a escola de se valer dessa recomendação

“Considere a continuidade da avaliação em seu planejamento. O professor-cooperador o encorajará a avaliar cada aula dada. Assim fazendo, você se tornará cada vez mais consciente dos fatores que o habilitam a planejar e a ensinar com mais eficiência”.

Interessante observar que, embora não tenha sido mencionada a avaliação formativa, as recomendações do livro nela encaixam.

 

Reflexões importantes

– O livro é dedicado, além de outras pessoas, a “professorandos”. Há muito tempo eu não ouvia esta palavra.

– O fato de os autores se referirem sempre ao professor-cooperador ou supervisor de Prática de Ensino como aquele que dá suporte às atividades dos professorandos mostra que havia a existência de forte proximidade entre o curso de formação de professores e as escolas de educação primária nos Estados Unidos, naquela época.

– Reproduzi itens inteiros sobre avaliação para ilustrar como naquela época, nos Estados Unidos, onde o livro foi publicado, havia a preocupação com o processo avaliativo e colaborativo, comprometido com as aprendizagens das crianças, o que talvez seja difícil de ser conduzido atualmente em função do estreitamento curricular imposto pelo uso excessivo de testes padronizados. Nos últimos anos, esses testes tomaram conta do cenário escolar a tal ponto de recebermos a notícia de que, neste ano de 2014, cerca de 40 mil pais boicotaram testes no Estado de New York. Eric Mihelbergel, pai e membro fundador do NYSAPE – New York State Allies for Public Education diz:

“Acreditamos fortemente na avaliação adequada das nossas crianças, mas a natureza dos testes de alto impacto e a coleta de dados não autorizada tem que parar. Nossos filhos são submetidos a um sistema de tamanho único para todos que se concentra mais em resultados de testes e coleta de dados do que na aprendizagem dos alunos e seu crescimento geral. Os pais estão comprometidos com um plano para chegar a 250.000 boicotes nos testes do Estado de New York”.

– Nas escolas brasileiras, a avaliação, que, nas últimas décadas vinha fazendo um grande esforço para voltar-se para a conquista das aprendizagens pelos estudantes, tem se voltado de forma inadequada para a aplicação de testes padronizados em nível nacional e estadual, chegando a provocar fraudes, como nos informa a publicação abaixo do blog do Freitas, em 04/10/2014:

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Fraudes estão ficando evidentes

Publicado em 04/10/2014 por Luiz Carlos de Freitas em blog do Freitas

Redes de ensino, na corrida pelo melhor IDEB, estão pressionando seus professores a deixarem de dar o conteúdo de outras disciplinas que não sejam português e matemática e usar o tempo para fazer recuperação ou treinar seus estudantes em simulados de português e matemática. A ordem é direta, em alguns casos, dada por coordenadores pedagógicos aos professores.

Em uma delas, a nota que o aluno tira em português e matemática vale também para as demais disciplinas omitidas, e é simplesmente repetida. A fraude mereceria apuração pelo Ministério Público pelo grave dano ao direito de aprender das crianças e mostra como as políticas dos reformadores empresariais que, em tese, são propostas para garantir tal direito, terminam por roubá-lo quando implementadas nas escolas.

Alunos e professores são ranqueados e festas comemoram os vitoriosos. Empresas de consultoria orientam estas redes.

É a maior evidência relatada do chamado estreitamento curricular produzido pelo uso intensivo de exames. Um verdadeiro vale tudo. O IDEB das redes, em alguns casos, é alto às custas da formação das crianças nas demais disciplinas.

Os professores precisam se organizar para fazer a denúncia destas situações. A dificuldade em algumas delas é que os professores são contratados pela CLT, não têm estabilidade e podem facilmente ser demitidos se discordarem das medidas, não as implementarem ou até mesmo se as denunciarem.

Esta é uma das razões pelas quais os professores têm que ter estabilidade no emprego. E é por isso também que os reformadores empresariais não gostam da estabilidade.”

 

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