Avaliação em tempos de ensino remoto: do desespero à transformação

                                                                       Por: Erisevelton Silva Lima

Professor da SEEDF, doutor em educação pela Universidade de Brasília – UnB, membro do GEPA.

            No decorrer deste ano letivo transformado pela necessidade do ensino remoto na rede pública de ensino do DF, o tema avaliação mexeu com as vidas e as mentes da maioria dos docentes. A instabilidade foi tamanha que logo inferi se tratar da necessidade de formação em avaliação e, não somente, dificuldades com as tecnologias.

João Cabral de Melo Neto, em sua obra ímpar, Morte e vida severina, assim traduziu: “Lúcido não por cultura, medido, mas não por ciência: sua lucidez vem da fome e a medida, da carência”. Sendo assim, o momento é singular e importante para investirmos na tarefa de promover a formação permanente e, nesse caso, balizada pelas reais necessidades das escolas e dos educadores. Ocorreu-me, também, que, no auge dessa pandemia, o percurso didático de muitos docentes foi traçado sem incorporar, desde o início, a avaliação; o indicador disso foi a quantidade de convites para participar de ‘live’, exatamente quando se aproximava o final do primeiro bimestre na rede pública local. Nos anos iniciais, a temática de como preencher o Registro de Avaliação, conhecido por RAv, liderou todos os chamados para acudir escolas e regionais de ensino; importante lembrar que na educação infantil e nos cinco primeiros anos do ensino fundamental não existe o uso de notas ou boletins nas escolas públicas do DF; são utilizados relatórios bimestrais para os anos iniciais e semestrais, para a educação infantil. Todavia, a sua feitura deveria ser diária, por meio dos apontamentos dos docentes em seus diários de classe e das estratégias individuais de como preferem registrar as evidências de aprendizagens dos estudantes.

         Quando a questão afligiu as escolas dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio, os pedidos de socorro de como avaliar e como realizar o conselho de classe foram quase uma unanimidade. No tocante ao conselho de classe, acredito que perceberam que não era mais possível repetirem reuniões desencorajadoras marcadas pela avaliação informal dos estudantes e das suas famílias. É como se a “caixa preta” do conselho de classe fosse aberta e, para espanto de todos, ela estivesse vazia.

Outro fato interessante foi a percepção de que no contexto desta pandemia e do ensino remoto, assim como as aulas, todas as reuniões coletivas e de planejamento deixaram de ser privadas, tornaram-se públicas, querendo nós ou não. Vejo isso como algo positivo e de forte apelo à mudança. O conselho de classe é a instância que pode agregar as discussões sobre os três níveis da avaliação e, portanto, a depender da condução da equipe gestora, pode ser mais ou menos produtivo (LIMA, 2012).

Na intenção de trazer para este texto minhas percepções sobre tais momentos, retirei das “lives” de que participei as perguntas e colocações mais repetidas. Para termos ideia do tamanho do desejo dos profissionais da educação sobre o tema que desenvolvemos na “live” sobre como avaliar e preencher o relatório de avaliação para os anos iniciais, eu e professora Vânia Leila Nogueira, em 04 de agosto de 2020, fomos surpreendidos por cerca de oito mil visualizações no Youtube. Algo incrível, não acham?

Vejam no quadro a seguir trechos das falas e perguntas mais recorrentes surgidas nesses encontros virtuais com regionais de ensino inteiras, escolas e docentes da educação básica:

PERGUNTAS E RELATOS DOS DOCENTES NAS LIVES

ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTALANOS FINAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL E ENSINO MÉDIO
Como avaliar e registrar a avaliação de estudantes que não acessam a plataforma?Como fazer o conselho de classe se ainda não conseguimos concluir as avaliações dos estudantes?
Que estratégias utilizar para avaliar os estudantes que estão desaparecidos dos grupos de WhatsApp e não entregam tarefas impressas?O que fazer quando os docentes se negam a lançar frequência dos estudantes baseados nas tarefas?
Como avaliar na plataforma nesse ensino remoto?Como conduzir um conselho de classe no ambiente virtual?
O que fazer para avaliar quando desconfiamos que não são as crianças que estão respondendo as atividades propostas na plataforma ou nas atividades impressas que retiram na escola?Como organizar um conselho de classe quando não temos o que tratar nele (notas dos alunos)?
Não consigo avaliar, na verdade não consigo nem ensinar, eu me preparei para educação presencial, estou perdida.O desespero bateu, e agora, todo mundo pode ver nossa aula e tudo que passamos, será que vão valorizar mais nossa profissão?

Fonte: Dados retirados pelo autor dos comentários realizados pelos docentes nos vídeos no Youtube

Percebam que as dúvidas não seriam sanadas com a simples fala de que deveriam transpor para a plataforma ou aplicativos as práticas já utilizadas no ensino presencial, por um lado isso pareceu-me positivo. Quanto à questão da ética e da avaliação, veio à tona e foi reforçada pela desconfiança dos docentes sobre quem realizava as tarefas dos seus alunos. A orientação sugerida foi a de que fizessem um contrato didático com os estudantes e seus familiares, que pactuassem sobre a qualidade e a valorização dos esforços das escolas que tentam em meio a tudo isso garantir a educação pública para todos. O conselho de classe passou a ser visto sob dois ângulos: o dos alunos que participam de alguma forma (plataforma, grupos de WhatsApp, tarefas impressas recolhidas na escola) e daqueles que não respondem seus professores em nenhuma das estratégias citadas anteriormente. Seguindo a lógica do replanejamento, sugeri que refizessem a organização curricular proposta no início do ano, quando a escola acreditava que o ano letivo seria presencial, todavia, que somassem esforços com as Coordenações Regionais de Ensino para que não desistissem da busca ativa proposta para os casos dos alunos que não conseguimos localizar de início. As escolas dos anos finais e do ensino médio começaram a envolver os estudantes nos conselhos de classe e nas estratégias de avaliação, o que vejo como algo muito positivo. A criação de formulários eletrônicos e a participação em enquetes e pesquisas deram voz a muitos discentes e seus familiares. O protagonismo estudantil é a solução e não o problema, especialmente para essas escolas com adolescentes e jovens. Eles estão se organizando, buscando os colegas, apoiando seus pares que se encontram em dificuldades conceituais e ou de manuseio tecnológico. Ainda não temos dados reais sobre tudo isso, mas o campo para a pesquisa e para aprendermos é rico e desafiador

A escola está se transformando, os males trazidos pela pandemia têm clamado por mudanças em todos os sentidos, a instituição viu seu modus operandi esgotado e, mesmo sentindo-se vigiada e nua, a organização do seutrabalho pedagógico está sofrendo profundas transformações que não sabemos ao certo em que resultarão, mas, otimista que sou, acredito que nossas escolas serão melhores quando esse mal passar. Parafraseando o título do livro de Benigna Villas Boas, agora é a pandemia e não somente a avaliação que está virando pelo avesso. Sigamos!

REFERÊNCIAS

LIMA, Erisevelton Silva. O Diretor e as avaliações praticadas na escola. Editora Kiron, Brasília-DF, 2012.

MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina e outros poemas.  Editora Alfaguara, 2010.

VILLAS BOAS, Virando a escola do avesso por meio da avaliação. Campinas-SP, Ed Papirus, 2008.