Helder Gomes
O conceito de letramento em avaliação é bastante atual e importante para a formação de professores nos diferentes cursos de licenciatura. Considerando que a avaliação é uma prática social, faz todo sentido falar sobre letramento em avaliação. A palavra letramento nesse sentido vai além da habilidade de leitura e escrita, é o uso efetivo dessas habilidades para atender as exigências sociais (KIRSCH e JUNGEBLUT 1990). De acordo com Soares (2017), o vocábulo letramento é de uso recente na educação e nas ciências linguísticas. Seu uso, segundo a autora, tem inicio na década de 80.
A palavra letramento utilizada no Brasil é uma tradução da palavra inglesa literacy, já na literatura no português de Portugal que trata sobre o termo, principalmente na área da educação, utiliza-se o termo literacia. De acordo com Soares (2017), a palavra letramento foi utilizada em língua portuguesa primeiramente por Mary Kato no ano de 1986, mas foi em 1988 que Leda Verdiani Tfouni introduziu a palavra no campo da educação por meio de seu livro “adultos não alfabetizados: o avesso do avesso”.
Na contemporaneidade, o termo letramento tem sido utilizado em vários contextos como, por exemplo, letramento digital ou tecnológico, letramento científico, letramento em avaliação, letramento crítico entre outros. Trata-se de um conceito expandido que se refere não só à aplicação na prática cotidiana dos conhecimentos sobre determinada área ou campo, mas traz também a questão da conscientização. (SCARAMUCCI, 2016)
Para exemplificar, podemos afirmar que nos dias atuais falamos mais do que nunca sobre letramento digital ou tecnológico de estudantes e professores. A pandemia do novo coronavírus trouxe uma nova realidade em todos os campos da vida humana. Na educação, a alta incidência do ensino remoto trouxe a necessidade imediata de apoderação, por parte dos estudantes e dos professores, de saberes para a utilização de recursos digitais, plataformas entre outros, além de vocabulário, conceitos e características próprias desse contexto. Nesse momento, podemos dizer que, durante a pandemia, professores e alunos estão cada vez mais letrados digitalmente.
Trazendo para o campo da avaliação, podemos dizer que ser letrado em avaliação é desenvolver saberes sobre a natureza e premissas da avaliação, além de suas funções e finalidades, e conseguir contextualizar esses saberes nas práticas cotidianas avaliativas. Inbar-Lourie (2008) traz o entendimento de que o letramento em avaliação requer uma visão holística, integrada, contextualizada e dinâmica da avaliação. Embora tenha tratado do letramento em avaliação no contexto de línguas, sua definição de letramento em avaliação pode ser transportada para outras áreas do conhecimento.
A clareza sobre o conceito de letramento em avaliação é um primeiro passo importante na formação de professores, mas, para o entendimento desse conceito, é necessário falar sobre avaliação nos cursos de formação de professores. O fomento às discussões sobre avaliação propicia um maior letramento dos docentes. Quanto mais se discute sobre avaliação na formação inicial de professores, quanto mais se reflete sobre esse tema, mais possibilidade de letramento. Por sua vez, professores mais letrados são capazes de produzir melhores instrumentos avaliativos, possuem mais clareza sobre o porquê da avaliação e suas consequências sociais.
Na sociedade brasileira ainda há pouco letramento em avaliação, o que acarreta posturas e sentimentos como o medo ou pavor de ser avaliado de um lado e de outro a avaliação como um momento de acerto de contas, o que são deturpações do ato que verdadeiramente é avaliar. Professores letrados em avaliação podem mudar esse quadro, por meio de práticas conscientes que não sejam punitivas, ameaçadoras, constrangedoras e excludentes. Stiggins (2004) afirma que a mudança do papel da avaliação está relacionada com a função social da escola e destaca ainda que a avaliação formativa é o caminho para a superação da avaliação excludente.
Dessa forma, é preciso que o letramento em avaliação do professor leve em consideração a avaliação formativa, pois esse tipo de avaliação é inclusivo, diagnóstico, integrado ao trabalho pedagógico e tem como foco as aprendizagens. De acordo com Villas boas (2002), a avaliação formativa é aquela que se insere no trabalho pedagógico e que visa à aprendizagem de todos os alunos. Infelizmente, a avaliação formativa, componente caro e essencial para o letramento em avaliação docente, ainda não é uma realidade nas graduações/licenciaturas. Há pelo menos duas décadas, Perrenoud (1999) afirmou que a formação de professores trata muito pouco sobre avaliação e menos ainda sobre avaliação formativa.
Essa mesma afirmação pode ser repetida hoje. Formamos pouco para a avaliação e menos ainda para a avaliação formativa. Podemos acrescentar que as avaliações praticadas nos cursos de licenciatura também deveriam ser formativa, seria uma maneira de os estudantes vivenciarem essa prática na formação inicial de forma concreta, certamente propiciaria uma materialização do conceito e da concepção de avaliação formativa.
O professor letrado pode letrar pais e estudantes esclarecendo os processos avaliativos e envolvendo todos na avaliação, deixando de ser esta de domínio exclusivo do professor. É importante salientar que todos os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem podem e devem ser letrados em avaliação, considerando as diferentes necessidades. Essa idéia em que todos participam da avaliação e são, portanto, avaliados e avaliam guarda semelha com os princípios da avaliação formativa.
Segundo Stiggins (1991), existem níveis diferentes de letramento em avaliação considerando os sujeitos envolvidos nos processos avaliativos. Dessa forma, o letramento em avaliação do docente difere-se do letramento em avaliação dos pais e estudantes. Nesse sentido, faz parte do letramento em avaliação do professor a capacidade de adaptar a linguagem e dosar a terminologia ao tratar de avaliação com pais e estudantes.
Mas, o que é preciso para o letramento em avaliação do professor em formação que vai atuar na educação básica?
Stiggins (1991) propõe três ações para que o letramento em avaliação alcance os diferentes atores (pais, estudantes, professores, gestores). São elas: 1. Compreensão aprofundada do significado de ser letrado em avaliação; 2. Diferenciação sobre níveis de letramento; 3. Cursos específicos que tratem sobre letramento em avaliação. A terceira ação proposta por Stiggins precisa ser incorporada pelos cursos de formação de professores nas universidades brasileiras a fim de minimizar as lacunas ou até mesmo a ausência de letramento em avaliação dos professores que saem das universidades e ingressam na vida profissional.
Se quisermos mudanças no cenário educacional de nosso país, precisamos investir no letramento em avaliação dos professores, uma vez que a avaliação tem grande potencial para provocar modificações no ensino. Segundo Scaramucci (1997), na avaliação reside grande parte dos problemas do ensino, mas também na avaliação está grande parte das soluções. Dessa forma, para tentar resolver ou melhorar a avaliação, é preciso conhecê-la e refletir sobre sua importância e impactos.
Os docentes necessitam precisamente definir com clareza o conceito de avaliação para não cair nas armadilhas, confusões ou mitos, conforme nomeia Hoffman (2017a), que envolvem a avaliação. Esses equívocos estão presentes quando avaliar é sinônimo de medida ou de aplicação de prova, ou ainda avaliar é meramente um mecanismo burocrático e definidor de quem é aprovado ou reprovado, ou seja, para não ser enredado por esses equívocos, é preciso compreender bem as questões teóricas, práticas, políticas e sociais da avaliação.
É preciso ainda que o futuro professor reflita sobre a quem interessa a avaliação classificatória, punitiva e excludente. Faz-se necessária a compreensão de que junto com essa avaliação há uma visão de educação e sociedade que precisa ser vista e entendida pelo professor. Nesse sentido, o processo de letramento em avaliação do docente precisa levá-lo a refletir sobre como construir e utilizar instrumentos avaliativos, bem como analisar os dados produzidos por esses instrumentos e deve capacitá-lo a agir tomando decisões em direção às aprendizagens dos estudantes, consciente de seu papel.
Para isso, é urgente que, nas licenciaturas, superemos a lógica de deixar a avaliação para o fim da fila, a última etapa, quase sempre desvinculada da organização do trabalho pedagógico. Nos estágios obrigatórios dos cursos de licenciatura, quase sempre, fala-se da aula, dos objetivos, dos recursos, mas a avaliação fica por último e tão mal colocada na maratona do “planejar aulas” que quase sempre nem se fala dela. Essa lógica precisa ser alterada. Qualquer planejamento escolar deve incluir a avaliação. Os futuros docentes precisam aprender a pensar na avaliação no primeiro momento do ato de planejar.
Ao pensar em mudanças, é preciso refletir sobre velhas práticas avaliativas que são executadas mesmo em momentos novos. Em meio à maior crise sanitária que assola a escola neste século, a grande preocupação está no produto. Isso é evidente na discussão em torno da famigerada dicotomia aprovar/reprovar. Nesse momento, a escola deveria estar construindo um grande pacto em prol da aprendizagem, imbuída na criação de mecanismos, inclusive avaliativos, para que no momento em que houver condições de realização de um trabalho escolar pleno, as aprendizagens não sejam negligenciadas, aceleradas ou “niveladas”.
Dessa forma, é necessário que seja trazido para discussão com os docentes em formação, não somente neste momento crítico, mas permanentemente, que na avaliação escolar a obsessão pelo resultado não pode obscurecer a importância do processo (FICHER, 2010).
Faz parte do letramento em avaliação do professor a compreensão dos diferentes níveis de avaliação. Segundo Freitas (2009), os níveis de avaliação são três: Avaliação da Aprendizagem, Avaliação Institucional e Avaliação de Redes ou Sistemas de Ensino. Assim, os professores letrados precisam estar capacitados para reconhecer e diferenciar uma avaliação de processo de uma avaliação de produto, ou ainda as características de uma avaliação para a aprendizagem e de uma avaliação de larga escala, ou ainda de um exame de entrada ou seleção.
Embora alguns pontos muito relevantes sobre conhecimentos técnicos da área de avaliação tenham sido levantados neste texto, o letramento em avaliação do professor não pode estar revestido apenas da dimensão técnica, principalmente porque estamos falando de avaliar pessoas, e a dimensão humana é essencial. Não se trata de não abordar as questões técnicas inerentes à avaliação na formação de professores, apenas se faz necessário esclarecer que não é preciso que os cursos de licenciatura aprofundem em uma formação voltada para a docimologia.
É preciso salientar que o professor, no contexto escolar, pode dominar muitas técnicas e métodos avaliativos e pode também preparar instrumentos de avaliação impecáveis, porém, se esses instrumentos não estiverem a serviço da aprendizagem, de nada adianta. De acordo com Black e Wilian (2010, p. 88) “a avaliação, como ocorre nas escolas, está longe de um problema meramente técnico. Pelo contrário, é profundamente social e pessoal”
A esse respeito, Saul (1995), em uma perspectiva emancipatória da avaliação, alerta sobre a influência positivista norte-americana nas práticas de avaliação no cenário brasileiro. Contrário a essa idéia exacerbadamente técnica da avaliação, precisamos entender que quem avalia precisa conhecer o avaliado, precisa respeitar suas características individuais.
É necessário internalizar as sábias palavras de Luckesi (2007) em que afirma que a avaliação é um ato amoroso, corroborado por Hoffman (2017b), que afirma que a avaliação precisa ser encorajadora. A sensibilidade para o incentivo e o acolhimento vão além das técnicas e métodos de avaliação. Essa percepção do outro nos processos avaliativos é mais um aspecto que necessita ser desenvolvido como um componente do letramento em avaliação dos futuros professores.
É sabido que nenhuma formação inicial conseguirá abarcar todos os aspectos profissionais do estudante em formação. No que refere à avaliação, não é possível e nem deve ser o objetivo esgotar o tema. Porém é fundamental que os licenciados deixem a universidade dotados da capacidade de compreender, refletir e debater sobre avaliação e que prossigam com essa postura profissional reflexiva em sua formação continuada, desenvolvendo-se com a discussão com seus pares, teorizando a experiência prática do trabalho pedagógico, além da participação em cursos de formação que tratem sobre temáticas relacionadas à avaliação. Essa postura é que vai permitir o avanço em seu nível de letramento em avaliação, aprimorando e expandido o processo iniciado na formação inicial.
Precisamos mais que nunca discutir com os professores em formação que, embora grande parte de suas vidas e de suas experiências escolares tenha sido marcada pela presença de provas nas avaliações, existe vida após as provas e é possível inclusive avaliar sem elas e contribuir mais efetivamente para a aprendizagem dos estudantes e, parafraseando Hadji (2001), é preciso que os professores deem provas de coragem para que a avaliação seja, de fato, formativa. Coragem necessária para superar ou desconstruir modelos e práticas de avaliação que servem a outros interesses que não a aprendizagem.
Na formação inicial de professores temos um momento ímpar para contrastar práticas de avaliação, evocando a consciência dos docentes em formação para que não apenas reproduzam avaliações que foram praticadas com eles e que estão em suas memórias, mas que tenham uma postura crítica e inquietante frente às práticas avaliativas, podendo implementar mudanças e aprimoramentos.
Nesse sentido, o letramento em avaliação pode ser um grande impulsionador das mudanças nas práticas docentes tanto no que se refere ao ensino como à avaliação, porque os dois elementos estão em união. Por isso a necessidade de se abordar avaliação nas licenciaturas, não como um apêndice, mas como uma disciplina ou um laboratório com carga horária compatível com a importância e complexidade que o tema requer.
Por ser algo relativamente novo, complexo e abrangente, o letramento em avaliação no contexto de formação inicial ainda necessita ser mais debatido, a fim de tentar delimitar o que é essencial para o letramento em avaliação do professor em formação inicial. Assim, para início das ações, é preciso de antemão garantir o espaço específico e efetivo para que a avaliação seja tratada nos cursos de licenciatura.
É importante destacar que essa formação precisa ficar nas mãos de professores da área de avaliação. Uma vez garantidos o espaço e os docentes habilitados, podemos ampliar os estudos e prioridades do letramento em avaliação do professor em formação inicial nos cursos de licenciatura.
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