Benigna Villas Boas
Durante a pandemia do corona-vírus tenho pensado muito sobre a formação de professores. Tenho acompanhado situações de ensino remoto nada convencionais, que merecem algumas reflexões.
Recentemente, em uma reportagem pela TV, vi uma professora gravando uma aula para seus estudantes acompanharem remotamente, durante a qual ela desenvolvia atividades de matemática sobre azulejos na cozinha da sua casa. Uma aula dinâmica, prazerosa e impensável. Justificou sua decisão dizendo que seus estudantes estavam desmotivados com as aulas remotas. Por isso introduziu algo que os animasse e prendesse sua atenção.
Outra professora de uma cidade do interior de Minas Gerais tem formulado atividades individualizadas, em folhas de papel, escritas a mão por ela e colocadas em sacolas plásticas, que ela prende na grade externa do jardim das casas dos seus estudantes. Dias depois ela volta para recolher as folhas com as atividades desenvolvidas.
Quando e como estas duas professoras aprenderam a agir assim?
Estas iniciativas nos levam a pensar sobre a formação dos professores, que tem início antes mesmo de frequentarem cursos de licenciatura, como estudantes da educação infantil, do ensino fundamental e médio. Quem nunca viu crianças de cerca de 4 ou 5 anos de idade chegarem em casa, após as aulas, reunirem seus brinquedos e fingirem que são seus alunos? Presenciei esta situação em minha casa. Minhas filhas davam aulas para os bichinhos de pelúcia e de borracha e para as bonecas. Uma delas falava muito alto e apontava o dedo para eles e eu pensava: sua professora deve agir assim.
Os episódios mais presentes nas simulações das crianças pequenas costumam ser os relacionados à avaliação. Talvez chamem tanto a sua atenção por conferirem poder aos professores. Elas captam muito bem a maneira de eles interagirem com elas. O que presenciam em sala de aula impregna o seu jeito de ser e de ver o mundo. Quem não se lembra do cantinho para pensar, dos recreios suspensos, das provas como momentos angustiantes, dos riscos vermelhos sobre atividades consideradas “erradas”, das provas difíceis para punir mal comportamento? Por meio de vivências deste tipo, os que escolherem cursos de licenciatura começam a se formar.
A formação inicial de professores deve incluir o letramento em avaliação, constituído por saberes e as práticas avaliativas vivenciadas nas diferentes atividades do curso. Isto quer dizer que, enquanto desenvolvem estudos sobre avaliação, o processo avaliativo por eles vivenciado completa o seu letramento. Tradicionalmente, “ensinam-se” conteúdos desconectados das experiências de avaliação em sala de aula. Por exemplo: aprende-se, em livros e textos, o que é autoavaliação, em que ela seja praticada. Apregoa-se a necessidade do uso do feedback, mas ainda não há apropriação dos seus objetivos, características e modus operandi. Os professores nem sempre o usam como recurso para o avanço das aprendizagens.
O letramento em avaliação tem sido negligenciado. Os futuros docentes não têm participado da avaliação condizente com a sua atuação futura nas escolas de educação básica. Esta situação os torna fragilizados quando se tornam professores.
A pandemia tem evidenciado a necessidade de a formação de professores aproximar-se das iniciativas das escolas de educação básica. Neste momento de afastamento social, os professores estão incorporando novas aprendizagens. Estão buscando meios para que seus estudantes sem acesso à internet não fiquem para trás. Já os docentes de cursos de licenciatura contam com mais possibilidades para desenvolverem atividades online e dar prosseguimento ao processo de aprendizagem. Indago: estarão os dois segmentos em articulação? A educação básica conta com os cursos de licenciatura, encarregados da formação dos professores. Estes cursos, por sua vez, para bem cumprirem o que deles se espera, devem estar em sintonia com o trabalho pedagógico das escolas de educação básica. As atividades de estágio e de residência pedagógica, quando devidamente acompanhadas pelos professores dos cursos de licenciatura, o que inclui contatos com as escolas onde são desenvolvidas, constituem formação continuada para os docentes destes cursos. Costuma-se falar em formação continuada para professores da educação básica, mas esta expressão se aplica também aos docentes das universidades. Refiro-me à sua formação continuada no sentido de estarem em dia com as necessidades das escolas de educação básica.
A permanente aproximação do que chamo de dois segmentos (o dos professores da educação básica e o dos professores dos cursos de licenciatura) constitui uma rica oportunidade para aprenderem um com o outro. Estes dois segmentos devem estar afinados e aproveitar todas as oportunidades para aprendizagem mútua.
A pandemia está apontando a necessidade de criação de ambiente mais colaborativo entre esses dois segmentos. Cada um isoladamente fará pouco. O letramento em avaliação, desenvolvido em cursos de licenciatura, ganha destaque em função das aulas remotas, que requerem processo avaliativo próprio. Este é um dos temas que clamam por construção de saberes e práticas. Trata-se de um fértil campo de trabalho para os docentes dos dois segmentos. Mas, atenção: esta é uma tarefa dos educadores profissionais e não de empresas, movidas por outros interesses.