PROMOÇÃO AUTOMÁTICA X PROGRESSÃO CONTINUADA: O NÓ DA ORGANIZAÇÃO ESCOLAR EM CICLOS

PROMOÇÃO AUTOMÁTICA X PROGRESSÃO CONTINUADA: O NÓ DA ORGANIZAÇÃO ESCOLAR EM CICLOS

Erisevelton Silva Lima

Professor da SEEDF, Doutor em Educação pela Universidade de Brasília- UnB)

             A ideia de que todos aprendem ao mesmo tempo e que o ano letivo é o ponto de partida e de chegada para os estudantes, de maneira homogênea, é a tese metodológica secular da seriação (FERNANDES, 2009; JACOMINI, 2009; DEMO, 1998; FREITAS 2003). A expressão “promoção automática” surge na década de 1950 cunhada por Dante Moreira Leite e Almeida Júnior como proposta de reorganização da escola ao democratizar o ensino (JACOMINE, 2009); no início, essa expressão tinha sentido diferente, hoje, representa aprovar sem aprender.

Os debates fervorosos e as manifestações de desapreço aos ciclos no Brasil possuem suas origens em questões políticas, sociais e econômicas afetas às condições materiais e objetivas que sustentam ou desequilibram o funcionamento da escola pública de educação básica; talvez, essas razões sejam mais fortes que, necessariamente, a desaprovação dos professores ao modelo dos ciclos em si. Nesse sentido, o debate polarizado entre aprovar ou reprovar tirou do foco o aprender e, com ele, o sentido de existir da educação escolar.

O professor Luiz Carlos de Freitas (2003) assevera que outro incômodo causado aos educadores, quando os sistemas de ensino adotam os ciclos, é expresso pela permanência na escola daqueles alunos que não logram “sucesso” e que, portanto, expõem as fragilidades antes maquiadas pela expulsão administrativa: reprovação, repetência e, em muitos casos, a evasão escolar. Todavia, segundo o mesmo estudioso, com a progressão continuada o debate, novamente, perde o cerne da discussão e passa-se a acusar essa estratégia como a responsável pelo problema do fracasso estudantil quando o que se pretendia era evitá-lo.

DIFERENCIANDO TERMOS E SENTIDOS

A promoção automática ou aprovação sem aprendizagem ocorre quando os sistemas de ensino retiram a reprovação da pauta normativa expressa nos documentos oficiais sem a garantia de reformulações e investimentos mais concisos. A exemplo disso, entra a necessidade de que se cuide melhor da formação continuada dos profissionais da educação, das inovações metodológicas e tecnológicas, dentre outras, que oferecem suporte ao ensino e as estratégias que modifiquem a estrutura da sala de aula e as interações que nela ocorrem. Em contrapartida, a progressão continuada diz respeito à regularização do fluxo escolar com qualidade e com o acompanhamento das aprendizagens dos discentes pelo coletivo da escola, do qual também fazem parte o Orientador Educacional e o Psicólogo Escolar.

No Distrito Federal, no ano de 2005, com a criação do Bloco Inicial de Alfabetização – BIA, vieram à tona o debate e a necessidade da observância dos temas anteriores; a bem da verdade, o investimento nos elementos que podem materializar a progressão continuada tem sido alvo de maior ou menor grau de importância, dependendo do programa de governo das gestões que assumem a pasta da educação local. No caso do BIA, as altas taxas de retenção dos estudantes, no final do 3º ano do bloco de alfabetização, têm causado nos professores e estudiosos, além do incômodo, a suspeita de que tal fato é produto da promoção automática; é importante esclarecer que não é esta a intencionalidade dos educadores ou dos documentos norteadores do sistema de ensino local, em todo caso esse fenômeno tem se revelado forte e merecedor de mais estudos.

No BIA, assim como em toda a organização escolar em ciclos no DF, os projetos interventivos, a diversidade de reagrupamentos dos estudantes, os documentos norteadores da avaliação e da prática docente, além da elaboração democrática do Currículo de Educação Básica para toda a rede, parecem construir, diferentemente de outros estados, uma rede de apoio pedagógico que pode fazer a diferença. Para tanto, a formação continuada dos profissionais da escola precisa, cada vez mais, ser potencializada e isso requer maiores e melhores investimentos. Não é possível mudar a escola seriada para ciclos se não for de dentro da sala de aula para todo o sistema, o contrário não tem feito a proposta vigorar nas unidades da federação que até aqui adotaram essa reorganização dos tempos e dos espaços escolares.

COMO SE FAZ A PROGRESSÃO CONTINUADA?

    É importante que o Projeto político-pedagógico da escola seja revisitado e reavaliado, paralelo a isso, toma-se o Currículo e se discute a organização curricular ou o redesenho do currículo para o ano em curso. A escola precisa definir o que os estudantes precisam aprender em cada componente curricular e em cada área. Também precisa definir como serão vivenciadas essas aprendizagens e as estratégias metodológicas possíveis para aquele coletivo. Com isso, é delineada a organização curricular, quando emergem as reais necessidades de modificação das estratégias de ensino e de avaliação. Em seguida, a instituição precisa lançar mão de estratégias da avaliação diagnóstica para que se identifiquem as aprendizagens trazidas pelos discentes e aquelas necessárias para cada um deles. Provas, testes diagnósticos, entrevistas, análises das atas dos conselhos de classe são todos bem-vindos. Os ciclos precisam, mais que qualquer outra forma de organização escolar, dar centralidade à avaliação, especialmente à avaliação formativa. Para Hadji (2001), a avaliação formativa independe de instrumentos, situa-se sobretudo na intencionalidade do avaliador com a garantia de que os estudantes aprendam.

Dessa forma, a avaliação diagnóstica se torna aliada da avaliação formativa (VILLAS BOAS, 2008); por meio dela é que, mapeados os percursos de aprendizagem desses estudantes, não se deve agrupá-los por nível de dificuldades e sim diversificar as estratégias de ensino e de avaliação; do contrário, além de contraproducente, tal procedimento fere os preceitos da Psicologia histórico-cultural e da Pedagogia histórico-crítica que apregoam a necessidade da aprendizagem colaborativa entre os pares. Aliás, essas correntes teóricas constituem, com a avaliação formativa, parte dos pressupostos teóricos do currículo de educação básica da Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal – SEEDF. Em face disso, no decorrer do ano letivo e, sempre que possível, a escola precisa utilizar-se de novas estratégias avaliativas para que, tanto o docente quanto o estudante, monitorem o desenvolvimento das aprendizagens. O Conselho de Classe, nessa ótica, se torna um espaço ampliado da coordenação pedagógica coletiva, isso diz respeito à necessidade de ressignificar esse espaço ampliando os tempos de avaliar, pesquisar, planejar e de a escola se autoavaliar constantemente.

Os registros, como diário de classe, fichas de acompanhamento individual dos estudantes, relatórios de avaliação e outros que a escola considere adequados, podem ser utilizados. A intenção é que, ao se encaminhar o estudante de um ano para o outro, ele leve consigo as informações do que aprendeu e do que ainda não aprendeu (em cada componente curricular) para que a instituição planeje suas estratégias, garantindo a progressão continuada.

Essa progressão, na prática, significa acompanhar as potencialidades e fragilidades de cada um, reforçando a ideia de que no próximo ano ou período ninguém olhe para a turma como uma classe nova em que todos se encontram no mesmo nível de desenvolvimento. Trata-se de tarefa complexa e necessária, desenvolvida pelo coletivo da escola, com ética e seriedade. Não se trata de aprovar sem aprender, ao contrário. É um mito entender que nos ciclos não se faz avaliação, assim como é outro mito acreditar que a avaliação praticada na seriação era justa e melhorava as aprendizagens dos discentes.

 

O LUGAR DA AVALIAÇÃO FORMATIVA

A avaliação formativa toma forma por meio do movimento que se apresentou no item anterior: avalia-se para ensinar, avalia-se para aprender. Avalia-se para que se garanta que todos consigam aprender. Não se trata de atribuir notas, pontos ou conceitos para o comportamento, a participação ou realização de cópias no caderno por meio do dever de casa por parte dos estudantes. A avaliação formativa surge, antes mesmo de o docente adentrar a sala de aula, ou seja, quando se pauta em certos critérios que definem o que o estudante ou a turma pode ou não aprender naquele período.

Avaliar, na perspectiva da avaliação formativa, requer a compreensão do que cada estudante precisa saber e conhecer o que se espera que ele aprenda, o que se deseja que ele realize. Com isso, o docente ou profissional da educação promoverá feedbacks ou retornos que permitirão que o estudante se autoavalie para progredir. A avaliação formativa se intensifica quando o docente internaliza seus princípios e age, o que se denomina de postura epistemológica; boa parte dos professores praticam-na, todavia, nem todos sabem dos fundamentos e da intencionalidade que essa função possuí. É preciso formação em avaliação (VILLAS BOAS, 2008). A avaliação formativa dá trabalho, requer que se diversifiquem instrumentos e procedimentos avaliativos, ela precisa se tornar uma avaliação encorajadora (HOFFMANN, 1993).

COMO SE FOSSE CONCLUSÃO

 

A mudança da seriação para os ciclos, isoladamente, não representa a cura de todos os males que envolvem as questões educacionais, até porque nem todo problema da educação é pedagógico. Todavia, ignorar que os meios, recursos e práticas da seriação não surtem mais efeitos remeteria a escola e seus profissionais ao patamar de práticos desassistidos das ciências e dos avanços que podem melhorar a complexa relação que se instaura quando se pretende ensinar e aprender.

Não se trata de culpar ou punir o professor, o docente é elemento central em quaisquer políticas educacionais que desejem ser exitosas; a diferença é que tal centralidade requer um pacto de qualidade negociada, a formação e os investimentos na carreira e na área devem caminhar pari passu com a implementação das políticas públicas. Os estudantes são acessados mais pelos professores que pelos políticos. Com isso, a relação, por vezes, tensa entre os governos e as categorias, atinge os discentes que, em sua maioria, dependem unicamente da escola pública para ascensão social. Ainda não existe uma resposta que defina ou equacione tal complexidade, mas certamente excluir os alunos, negando-lhes o direito de aprender, não tornará mais digna e cidadã essa sociedade. Os docentes são organizados e possuem sindicatos ou colegiados que os representem. Quem representa e quem defende os interesses e necessidade de aprender dos estudantes?

 

REFERÊNCIAS

DEMO, P. Promoção automática e capitulação da escola. Ensaio: Avaliação e Políticas públicas em educação. CESGRANRIO, Rio de Janeiro, v. 6, n. 19, p. 159-190, abr./jun. 1998.

FERNANDES, C. Escolaridade em ciclos: desafios para a escola do século XXI. Wak editora, 2008.

FREITAS, L. C. de. Ciclos, Ciclos, seriação e avaliação: avaliação confrontos de lógicas. São Paulo: Moderna, 2003.

HADJI, Charles. Avaliação Desmistificada. Porto Alegre: Artmed, 2001.

HOFFMANN, J. Avaliação Mediadora: uma prática em construção da pré-escola à universidade. Porto Alegre: Mediação, 1993.

JACOMINE, M. A. Educar sem reprovar: o desafio de uma escola para todos. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.3, p. 557-572, set./dez. 2009.

VILLAS BOAS, B.M.F. Virando a escola do avesso por meio da avaliação. São Paulo: Papirus, 2008.

 

 

 

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