Registros de Desenvolvimento Individual da Criança (RDIC) e Registro de Avaliação (RAv) nos Anos Iniciais: da documentação pedagógica ao processo de elaboração do relatório

Professora Elisângela T. Gomes Dias

Pesquisadora do GEPA

Publicado no blog do GEPA em 19/04/2024

gepa-avaliacaoeducacional.com.br

          Avaliar no contexto educacional, especialmente quando nos referimos à educação infantil e aos anos iniciais do ensino fundamental, vai muito além de testar ou medir conhecimentos por meio de provas ou testes padronizados. Avaliar é um processo complexo e contínuo que busca compreender, de maneira holística, o desenvolvimento integral da criança, abrangendo não apenas o aspecto cognitivo, mas também o social, emocional e físico.

          Nessa perspectiva, avaliar implica observar, registrar, refletir e analisar o processo de aprendizagem de forma ampla. A avaliação considera as múltiplas dimensões do desenvolvimento infantil e se interessa tanto pelo percurso quanto pelo ponto de chegada. Ela é formativa, contínua e reflexiva, visando impulsionar esse desenvolvimento.

          Diante da necessidade de acompanhar o desenvolvimento integral das crianças, o relatório individual emerge como um instrumento de avaliação particularmente adequado. Isso se deve a várias razões, as quais destacamos:

  1. Personalização – O relatório permite uma avaliação personalizada, que leva em conta as características únicas de cada criança, seus interesses, ritmos de aprendizagem, pontos fortes e áreas a desenvolver;
  2. Integralidade – Por meio do relatório, é possível registrar não apenas avanços cognitivos, mas também progressos emocionais, sociais e físicos, oferecendo uma visão completa do desenvolvimento da criança;
  3. Processualidade – O relatório individual favorece o acompanhamento do processo de aprendizagem, permitindo identificar avanços, dificuldades e momentos significativos na trajetória educacional da criança. Essa documentação processual é fundamental para ajustes metodológicos e pedagógicos;
  4. Diálogo – Serve como um canal de comunicação entre a escola e a família, promovendo um diálogo construtivo sobre o desenvolvimento da criança. Os relatórios podem ajudar a alinhar expectativas e ações entre professores e pais/responsáveis;
  5. Reflexão e Planejamento – Para os educadores, o ato de elaborar relatórios individuais é também um momento de reflexão sobre suas práticas e sobre como estas impactam cada criança. Além disso, esses relatórios ajudam no planejamento de estratégias pedagógicas mais eficazes e personalizadas.

          Portanto, o relatório individual, ao contrário de testes ou medidas isoladas, oferece uma ferramenta rica e dinâmica para a avaliação na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental. Ele respeita a complexidade do processo educativo, valorizando todas as dimensões do desenvolvimento humano e fortalecendo a aprendizagem significativa.

          Mas, como esse relatório pode ser elaborado?

          O primeiro passo é a coleta e a organização dos dados. Para tanto, identifique quais objetivos definidos no planejamento guiarão o processo avaliativo. Colete dados de diferentes fontes, como observações em sala de aula, avaliações formais e informais, trabalhos escritos, projetos de arte, interações sociais e feedback dos pais. Essa avaliação é critério-referenciada, isto é, avalia a partir de critérios predefinidos ao invés de compará-lo com o desempenho de outros alunos. Esta abordagem foca no que a criança já sabe e é capaz de fazer, considerando os objetivos de aprendizagem específicos. Sua contribuição para a organização do relatório individual é significativa e multifacetada, oferecendo uma estrutura clara para a documentação e reflexão sobre o desenvolvimento e o processo de aprendizagem. Isso significa que o educador pode documentar de forma precisa em que medida cada criança atingiu esses objetivos, proporcionando uma base sólida para observações e análises.

          Segundo Ostetto (2009), a documentação pedagógica não é apenas um registro das atividades realizadas, mas um processo que envolve a observação atenta, a escuta sensível e a interpretação dos processos de aprendizagem das crianças. Ela propõe uma organização da documentação pedagógica que pode ser estruturada em várias etapas, contemplando a complexidade e a riqueza das experiências vividas, especialmente na educação infantil. Essa documentação pode incluir:

  1. observação direta das atividades das crianças, anotações sobre suas interações, diálogos, expressões, gestos e brincadeiras. Fotografias, vídeos e gravações de áudio também podem ser utilizadas para capturar momentos significativos;
  2. coleção de desenhos, escritas, construções, entre outras produções realizadas pelas crianças, que evidenciam seus processos de aprendizagem e criatividade;
  3. criação de portfólios individuais ou coletivos, que reúnem uma seleção de registros e produções, organizados de forma a evidenciar o desenvolvimento e aprendizagem das crianças ao longo do tempo;
  4. organização de exposições ou murais na escola que tornam visíveis as experiências, descobertas e aprendizagens das crianças para toda a comunidade escolar.

          Importante destacar que a documentação pedagógica é um processo dinâmico e contínuo, que deve estar integrado ao cotidiano educativo, contribuindo para a construção de uma prática pedagógica reflexiva, responsiva e baseada nas experiências concretas das crianças. Ao tornar a aprendizagem visível, a documentação pedagógica não só valoriza o trabalho das crianças e dos educadores, mas também promove uma cultura de investigação, reflexão e diálogo na educação infantil (OSTETTO, 2009).

          Em seguida, agrupe os dados por categoria: organize os dados coletados em categorias relevantes, como aspectos cognitivos (desempenho acadêmico), desenvolvimento corporal, aspectos socioemocionais. Você também pode agrupar os objetivos por campos de experiências ou áreas de conhecimento.  

          Analise os dados para identificar os pontos fortes da criança e as áreas em que ela pode melhorar. Reflita sobre os registros e produções, buscando compreender os processos de aprendizagem, as hipóteses das crianças, suas formas de expressão e interesse. Essa etapa é fundamental para a construção de significados a partir da documentação coletada.  Isso ajudará a fornecer um feedback completo e equilibrado no relatório. Ademais, a análise detalhada proporcionada pelos relatórios individuais, baseada em critérios específicos, auxiliará no planejamento de intervenções pedagógicas mais direcionadas. Isso pode incluir a adaptação de estratégias de ensino, a personalização de atividades de aprendizagem e o desenvolvimento de planos de apoio para atender às necessidades individuais das crianças. Ostetto (2009) sustenta que a utilização dos insights obtidos por meio da documentação pedagógica permite aos educadores o planejamento de novas experiências de aprendizagem, projetos e atividades que respondam aos interesses, necessidades e potencialidades das crianças.

          Estruture o relatório nas seguintes etapas:

  1. Introdução – após incluir informações básicas sobre a criança, como nome, idade, turma e período abrangido pelo relatório, descreva brevemente o propósito do relatório e o contexto em que a criança está sendo avaliada.
  2. Desenvolvimento – faça uma síntese em relação ao processo de aprendizagem da criança ao longo do bimestre ou semestre letivo. Importante relatar o que foi observado em relação ao trabalho pedagógico desenvolvido. Lembre de registrar, além dos aspectos cognitivos e psicomotores, os aspectos socioemocionais (como a criança interage com os colegas, com as regras e rotinas escolares; como participa das atividades e lida com conflitos e desafios propostos). Ao descrever, destaque os pontos fortes e áreas de melhoria, usando exemplos específicos sempre que possível.
  3. Considerações finais – Conclua o relatório com sugestões para apoiar o desenvolvimento contínuo da criança. Isso pode incluir recomendações para atividades específicas em casa, estratégias de apoio adicional na escola ou áreas de foco para o próximo período. Sugiro um parágrafo breve retomando o aspecto central que precisa de investimento, sendo finalizado com uma perspectiva propositiva, encorajadora.
  4. Em caso de necessidade de algum encaminhamento, como o atendimento por equipes de apoio à aprendizagem ou a realização de avaliações específicas, é necessária uma abordagem cuidadosa e sensível. O objetivo é assegurar que a comunicação seja feita de maneira positiva e construtiva, sem antecipar diagnósticos ou criar estigmas em torno da situação observada. A título de exemplo – A professora observa que uma criança apresenta dificuldade de leitura. No relatório, pode ser registrado: “Observamos que João parece esforçar-se para visualizar detalhes em ilustrações ou textos projetados, aproximando-se frequentemente para uma melhor visão.” Ou “Para apoiar ainda mais o desenvolvimento de João e garantir que ele aproveite ao máximo as atividades propostas, sugerimos acompanhamento da equipe de apoio à aprendizagem. Acreditamos que uma avaliação detalhada, realizada por profissionais especializados, pode oferecer insights valiosos sobre como melhor apoiar João, garantindo que ele continue a prosperar em um ambiente de aprendizado inclusivo e estimulante.” Se houver necessidade de maior apoio familiar, pode ser acrescentado ainda: “Valorizamos a parceria entre a escola e a família e convidamos vocês a se juntarem a nós nesta jornada, explorando juntos as melhores formas de apoiar o desenvolvimento integral de João.” E finalize reafirmando seu compromisso com o bem-estar e o sucesso da criança, expressando confiança em sua capacidade de superar desafios com o apoio adequado. Exemplo: “Estamos comprometidos em oferecer um ambiente de aprendizado acolhedor e estimulante para João e confiamos em sua capacidade de alcançar seu pleno potencial com o apoio e compreensão de todos nós.”

Utilizando essa estrutura e linguagem, é possível comunicar recomendações de encaminhamentos de forma positiva e eficaz, assegurando que os pais e responsáveis compreendam a intenção de promover o interesse e desenvolvimento da criança.

          Após a elaboração, é preciso ler o relatório cuidadosamente para garantir que todas as informações estejam corretas e que a linguagem seja clara e compreensível.

          De acordo com Hoffman (2002), é preciso responder quatro questões para compreender que o relatório individual atende a sua real necessidade. Essas questões são: 1) Os objetivos norteadores da análise do desenvolvimento da criança transparecem nos relatórios? 2) Percebe-se o caráter mediador do processo avaliativo? 3) Privilegia-se, ao longo do relatório, o caráter evolutivo do processo de desenvolvimento da criança? 4)  Percebe-se o caráter individualizado no acompanhamento da criança?

          Se possível, peça a outros educadores para revisarem o relatório e oferecerem sugestões de melhoria.

Como deve ser a linguagem utilizada?

          A adoção de uma linguagem cuidadosa, reflexiva e construtiva nos relatórios individuais é um passo fundamental para a construção de ambientes educacionais mais inclusivos, respeitáveis e democráticos. Ao refletir sobre a escolha das palavras, os educadores podem contribuir significativamente para o desenvolvimento positivo das crianças, promovendo um clima de respeito, encorajamento e apoio mútuo.

          A linguagem não é apenas um meio de comunicação; ela reflete e molda percepções, atitudes e valores. No contexto educacional, a escolha das palavras e expressões tem o poder de influenciar significativamente o desenvolvimento da criança, a percepção dos pais e cuidadores sobre seus filhos e a maneira como os próprios estudantes se veem. Portanto, é crucial adotar uma linguagem que seja ao mesmo tempo precisa, sensível e construtiva.

          Essa linguagem dos relatórios deve ser clara e objetiva, evitando ambiguidades que possam levar a interpretações errôneas. Descrever comportamentos e conquistas de forma específica ajuda a comunicar de maneira efetiva o progresso da criança e as áreas que necessitam de atenção. Isso contribui para uma abordagem mais equilibrada e positiva e fomenta o diálogo e a colaboração entre educadores, estudantes e famílias.

          Assim, escreva o relatório em linguagem clara e acessível, evitando jargões técnicos. Mantenha um tom positivo e encorajador, mesmo ao abordar áreas de melhoria.

          O que NÃO pode conter a escrita do relatório?

          O objetivo principal do relatório é documentar o progresso da criança em várias dimensões, incluindo a cognitiva, a física, a emocional e a social. Desse modo, ao escrever relatórios individuais, é crucial não utilizar termos e expressões que possam ser considerados preconceituosos, discriminatórios ou que perpetuem estereótipos.

          Focar em aspectos comportamentais negativos pode levar à rotulagem da criança, o que pode afetar sua autoestima e seu comportamento futuro. Rotular uma criança como “problemática”, “indisciplinada” ou “difícil” pode criar estigmas que influenciam a maneira como ela é vista e tratada por educadores, colegas e até mesmo pela família. Portanto, qualquer termo que denote preconceito ou discriminação não deve ser utilizado no relatório.

          Rotular as crianças com palavras que definem sua identidade com base em comportamentos ou desempenho acadêmico limita e prejudica a percepção sobre suas capacidades reais e potencial de crescimento. A linguagem dos relatórios deve refletir a compreensão de que todos os estudantes são capazes de aprender e evoluir.

          Em vez de escrever “a criança não participa das atividades em sala de aula”, prefira “a criança mostra-se reservada durante as atividades em grupo, podendo se beneficiar de estratégias que a encorajem a se expressar mais livremente”. De modo semelhante, substitua observações como “a criança é distraída” por “a criança demonstra interesse variável, sugerindo a necessidade de explorar diferentes abordagens para manter sua atenção”.

          Mas, atenção: a maioria dos quadros e listas de “palavras e expressões” para uso em relatórios individuais de estudantes, que circulam na internet e sugerem substituições eufemísticas para comportamentos considerados negativos, refletem uma prática pedagógica que necessita de uma revisão crítica profunda. Embora a intenção por trás dessas sugestões possa ser a de suavizar a linguagem usada para descrever dificuldades ou desafios enfrentados pelas crianças, elas podem inadvertidamente perpetuar uma abordagem superficial e estereotipada da avaliação do comportamento e do desenvolvimento das crianças.

           Comportamentos descritos pejorativamente como “bagunceiro, relaxado e porco” refletem não apenas uma visão negativa e estigmatizante, mas também ignoram as múltiplas causas subjacentes que podem influenciar tais ações. Além disso, as expressões recomendadas nesses quadros muitas vezes reforçam estereótipos e expectativas sociais rígidas sobre como as crianças devem se comportar, aprender e interagir. Ao invés de reconhecerem e valorizarem a diversidade de comportamentos e estilos de aprendizagem, tais abordagens promovem a conformidade a normas muitas vezes arbitrárias e restritivas.

          Desse modo, este tipo de material deve ser banido do espaço escolar. Afinal, cada criança é única, com suas próprias experiências, desafios e conquistas. O uso de expressões genéricas e padronizadas falha em capturar a individualidade da criança, reduzindo a riqueza de sua personalidade e desenvolvimento a frases feitas que pouco dizem sobre suas reais necessidades e potenciais.

          É igualmente importante frisar que, ao descrever comportamentos específicos observados, preferencialmente contextualizando-os e sugerindo estratégias de apoio ou melhorias, não os associe a “possíveis causas”. Em nada contribui relatar fatos como a separação dos pais na tentativa de justificar determinado comportamento ou mesmo dificuldade no processo de aprendizagem, assim como não deve ser registrado que “a família é desestruturada”, que “a criança sofre com a falta da figura paterna” ou algo neste sentido. O foco deve ser o processo de aprendizagem. Portanto, deve-se priorizar comentários que reconheçam o progresso, as conquistas e os pontos fortes da criança, oferecendo uma visão equilibrada que inclua desafios e áreas para crescimento de maneira construtiva.

          Por fim, saliento que o relatório individual deve ser uma ferramenta de reflexão e planejamento educacional, não apenas para os educadores, mas também para as famílias, contribuindo para uma visão holística do desenvolvimento da criança. É essencial adotar uma abordagem equilibrada que reconheça as complexidades do comportamento e do aprendizado, evitando simplificações que possam prejudicar a percepção e o tratamento das crianças no ambiente educacional. A professora Benigna Vilas Boas, ao revisar e ler este texto, acrescenta:  assim compreendido e praticado, o relatório individual se insere na função formativa da avaliação.

Referência

HOFFMANN, Jussara Maria Lerch. Avaliação na pré-escola: um olhar sensível e reflexivo sobre a criança. 10.ed. Porto Alegre: Mediação, 2002.

OSTETTO, Luciana Esmeralda. Documentação pedagógica na Educação Infantil: prática reflexiva, pesquisa e formação de professores. Campinas: Autores Associados, 2009.

publicação variável conforme a edição.

 

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