TRABALHO ESCOLAR, DISCIPLINA E REGIMENTO ESCOLAR DA REDE PÚBLICA DE ENSINO DO DF: INCOERÊNCIAS E CONTRADIÇÕES

TRABALHO ESCOLAR, DISCIPLINA E REGIMENTO ESCOLAR DA REDE PÚBLICA DE ENSINO DO DF: INCOERÊNCIAS E CONTRADIÇÕES

Edileuza Fernandes Silva (SEEDF/UnB)

Enílvia Soares Morato (SEEDF/GEPA)

 

O cumprimento da função social da escola requer uma organização que se desvela por meio de práticas que reclamam dos sujeitos que a integram, comportamentos considerados apropriados ao alcance desse fim. Organizar-se de forma a diminuir o grau de incertezas que dificultam, quando não impedem a escola de cumprir o seu papel social de ensinar a todos, se mostra, portanto, pertinente e necessário. A disciplina insere-se nesse contexto, tornando necessária a adoção de normas de convivência que possibilitem um ambiente favorável ao desenvolvimento das atividades escolares comprometidas com as aprendizagens de todos.

Chama atenção, no entanto, a inversão de ordem para o tratamento de questões disciplinares por parte do atual governo do Distrito Federal/Secretaria de Estado de Educação (SEEDF). Ao invés de investir na implementação do Plano Distrital de Educação (PDE 2015-2024) e do Currículo em Movimento da Educação Básica, políticas públicas concebidas com a participação da comunidade escolar do DF, esforços se voltam ao intento de modelar comportamentos que, assim, se mostram estereotipados porque impostos externa e autoritariamente, configurando a retomada da pedagogia comportamental fundada no “estímulo-resposta”, de base tecnicista, predominante nos anos duros da ditadura militar no Brasil.

A militarização de algumas escolas e, mais recentemente, a aprovação de alterações no Regimento Escolar, válido para a rede pública de ensino do DF, são exemplos desse modo invertido de compreender e atuar visando solucionar problemas disciplinares nas escolas. Entre arbitrariedades como a revista de estudantes, a retirada deles de atividades de sala ou externas, podendo chegar, até mesmo, à transferência compulsória, o Regimento contém, agora, normas que legalizam um verdadeiro comércio de notas, elegendo o comportamento como moeda de troca.

A atribuição de pontos negativos e positivos no cálculo da nota dos estudantes por cada componente curricular corresponderá, segundo o documento, ao cumprimento ou descumprimento das normas disciplinares nele estabelecidas. Medidas dessa natureza deslocam a avaliação do papel que lhe cabe de acompanhar o desempenho dos estudantes e promover melhorias no trabalho pedagógico visando a aprendizagem contínua e progressiva de todos, aproximando-a do controle comportamental. O domínio do comportamento dos estudantes por meio de avaliações utilizadas para punir ou premiar via aumento ou diminuição da nota, coaduna com uma formação voltada à adequação dos sujeitos à sociedade que se tem, preparando-os para a conformação e a subserviência ao que foi prévia e unilateralmente instituído e afronta os pressupostos teóricos do Currículo em Movimento.

O mesmo pode ser dito a respeito de se revistar estudantes, privá-los de participar das atividades escolares ou mesmo transferi-los para outra instituição escolar como recurso mantenedor da ordem. A vivência de situações punitivas constitui, para muitos estudantes, humilhação capaz de gerar constrangimento e revolta ou a aceitação e assunção de posturas incompreendidas porque não refletidas. Em ambos os casos, a escola trabalha na contramão do seu sentido de existir, inviabilizando processos educativos formadores de sujeitos críticos e conscientes. A contribuição formativa da escola seria, nesse caso, ensinar que os conhecimentos que veicula são restritos aos que se comportam conforme seus preceitos.

Além dos modelos comportamentais que precisam/devem ser seguidos pelos estudantes a fim de facilitar sua coexistência pacífica no espaço escolar, vale ainda lembrar dos desdobramentos da punição sobre os que não cometeram a falta, como forma de lhes exemplificar condutas que precisam/devem ser evitadas. Como se não bastasse, a ameaça de extensão da punição pode ainda conduzir os não infratores à delação que, assim, adquire status de mérito pela contribuição que oferece à retomada da normalidade consensual e acrítica. O sistema de gratificação-sanção que se percebe em situações dessa natureza, com a compensação e a penalização dos estudantes colocam o trabalho escolar a serviço da manipulação de corpos, distanciando-os da conquista dos saberes que lhes conferem a condição de pensar e agir autonomamente.

O cumprimento do “ofício de aluno” (PERRENOUD, 1995) constitui, assim, uma preparação do cidadão que se insere pacificamente ao meio social, aceitando o que está posto como uma fatalidade contra a qual não se deve lutar, uma vez que opor-se a ela constitui rebeldia passível de punição e exclusão. Os riscos representados por comportamentos que fogem ao estabelecido, porque ameaçam reverter estruturas supostamente consolidadas, induzem ao uso da educação escolar como mecanismo de perpetuação do atual e injusto modelo social excludente e meritocrático.

A necessidade de uma “escola sem partido” (como se o apartidarismo fosse possível) emerge em função desse receio. Apesar das influências do meio social sobre a escola dificultando investidas no sentido de transformá-lo, é inegável o potencial dessa instituição enquanto espaço de luta com vistas a melhorias no campo social. Nessa perspectiva, o trabalho escolar deve voltar-se ao cumprimento do compromisso ético e político de ensinar a todos, o que pressupõe promover aprendizagens que permitam aos estudantes o livre pensar, independentemente das características naturais e sociais que os individualizam e em consonância com os direitos legais e humanos que os igualam.

Vale lembrar que, mesmo quanto obtida, a disciplina imposta por meio da opressão não garante a redução de atos violentos. Por não se assentar em bases sólidas, torna-se aparente, artificializada e propensa a voltar ao “normal” ou à indisciplina em situações nas quais as consequências se mostrarem menos punitivas. É bastante comum a reincidência da violação de regras por sujeitos que já foram anteriormente castigados.

Sem desmerecer a importância de um ambiente pacífico para o desenvolvimento das atividades escolares, o que aqui se pretende é alertar sobre os cuidados necessários na definição dos caminhos trilhados rumo a conquista dessa realidade. Sob o argumento de se promover a “cultura da paz”, o tratamento estabelecido pelo Regimento aos comportamentos estudantis, considerados desviantes precisam ser compreendidos, debatidos e rechaçados, uma vez que se baseiam na exclusão de parte dos estudantes, especialmente daqueles que se opõem a se enquadrar em um modelo disciplinar que lhes foi imposto por diferentes motivos, entre eles, por afetar o seu capital cultural e de suas famílias. Vale lembrar que as escolas públicas constituem, para muitos estudantes, a única possibilidade de acesso a conhecimentos historicamente acumulados, diferente daqueles que podem optar e até mesmo disputam vaga para ingressar em outras instituições educativas, o que traz implícita a aceitação passiva de suas imposições.

A ordem imposta via repressão serve, portanto, aos que a ela se opõem ou não se adequam, como meio de seleção e exclusão. As condutas censuradas e as advertências (orais e escritas), bem como as expulsões que a elas comumente se seguem, servem para separar os “bons” dos “maus” estudantes, ou seria o “joio do trigo”? uma dicotomia característica de políticas lineares a serviço da reprodução de valores, culturas e padrões. O endurecimento da vigilância e das punições aumenta em muito a possiblidade de que sejam afastados da escola justamente os que têm nela sua real e, muitas vezes, única oportunidade de ascensão social.

Mas qual seria, então, o melhor caminho?

O termo “disciplina” diz respeito tanto à obediência a regras e pessoas hierarquicamente superiores, como a condutas que asseguram o bem-estar dos indivíduos ou o bom funcionamento de instituições. Ou seja, pode relacionar-se à subserviência, mas também ao melhoramento pessoal e institucional. É esse último entendimento que acreditamos possibilita articular a função formativa da educação escolar à disciplina.

Formar para a emancipação pressupõe o diálogo fraterno e respeitoso entre educadores e estudantes. Requer, portanto, uma relação horizontalizada que conduz à assunção de responsabilidades por todos os envolvidos. No caso da escola, isso inclui estudantes, famílias, professores e demais profissionais que nela atuam em um processo de gestão democrática e de busca da “qualidade negociada” (BONDIOLI, 2004), assumida no projeto político-pedagógico da escola, que no texto do Regimento suprime o qualificativo “político”, ignorando que seu sentido expressa o compromisso sócio-político da escola com a formação do cidadão/cidadã e com os interesses reais e coletivos da população (VEIGA, 1996).

Dar protagonismo aos estudantes, envolvendo-os na organização e avaliação do trabalho pedagógico parece ser um bom início para a construção de uma formação que conte, entre outras coisas, com a disciplina desses sujeitos para a promoção de suas aprendizagens – propósito maior do processo formativo. Ao perceber-se incluso no planejamento, desenvolvimento e avaliação do trabalho escolar, os estudantes compartilham também da responsabilidade pelos resultados dele advindos. Isso inclui o exercício da disciplina necessária para que tais conquistas se efetivem.

Defendemos a construção de um projeto educativo que possibilite aos estudantes um ensino vivo e dinâmico, vinculado aos problemas e às questões que permeiam a realidade, visando motivá-los no sentido de conquistar aprendizagens que permitam compreender esse meio e nele atuar com criticidade e autonomia. Um projeto fundado na educação para a sustentabilidade, para a diversidade e para a cidadania e os direitos humanos.

Referências

BONDIOLI, A. O Projeto pedagógico da Creche e a sua Avaliação: A Qualidade Negociada. Campinas: Autores Associados, 2004.

PERRENOUD, Philippe. Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Trad. Júlia Ferreira. Porto, Portugal: Porto Editora Ltda, 1995.

 

 

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