Dever de casa : em nome da punição ou da aprendizagem?

Enílvia Rocha Morato Soares

A Prefeitura de Caratinga informou no fim da tarde desta segunda-feira (28/6) a morte do garoto de 6 anos, que foi espancado pelo pai, um homem de 26 anos, que deu socos na criança porque ela não conseguia resolver uma tarefa da escola, o chamado “dever de casa”. (Correio Braziliense, 29/06/2021)

Além dos sentimentos de repugnância, horror e indignação que nos suscita o fato gerador da notícia acima, ele nos remete, mais uma vez, à necessidade urgente de se repensar coletivamente as tarefas encaminhadas pela escola para que sejam realizadas fora dela, incluindo nesse processo, em especial, os estudantes e seus familiares.

A naturalização desse tipo de atividade, que torna mecânica sua adoção, é, em grande medida, responsável por situações de coação e punição, como as denunciadas por crianças de uma turma de 3º ano de escolaridade ao serem questionadas quanto ao modo como eram acompanhadas na realização dos deveres de casa (VILLAS BOAS e SOARES, 2013, p. 73):

  • Minha mãe fica nervosa e grita comigo.
    • Quando eu não sei fazer o dever de casa, minha vó faz gritando comigo e fala que eu sou burra. 
    • Quando a minha mãe me ensina… fala, fala, fala e, se eu erro, ela me coloca de castigo. 
    • Quando não faço certo, minha mãe me belisca. 
    • Uma vez, meu irmão não estava conseguindo fazer o dever de casa, meu pai pegou e bateu a cabeça dele na mesa e no outro dia foi minha mãe que puxou a orelha dele. Aí sangrou.

O perigo que ronda uma parcela de estudantes nos momentos de realização das tarefas realizadas em casa foi confirmado por uma mãe ao declarar (VILLAS BOAS e SOARES, 2013, p. 90):

  • Quando ela [referindo-se à filha] fala: eu tenho um monte de tarefa, eu falo: ah não! Aí eu fico fazendo comida e ajudando porque trabalho o dia todo. Aí já respondo agressivamente. Eles fazem com raiva… o pai ajuda com raiva.  Já chamei ele [referindo-se ao outro filho] de burro no horário do dever. E ele fala: eu sou burro mesmo!

            Embora não exista argumento que justifique agressões verbais, castigos físicos e, é óbvio, a morte de uma criança, o que se percebe é que os pais ou responsáveis nem sempre estão preparados ou em condições de orientar os filhos nos afazeres escolares. A esse respeito cabe questionar: Eles deveriam estar? A educação que cabe a eles oferecer inclui o ensino escolar? A formação docente seria, então, dispensável?

            O justo argumento comumente utilizado por educadores de buscar, por meio do dever de casa, envolver as famílias no processo formativo dos estudantes não pode ser automaticamente estendido a todas elas. A reportagem inicialmente apresentada fornece indícios que confirmam esse pressuposto quando explica que o pai, autor do assassinato, irritou-se ao orientar o filho na resolução das tarefas de casa porque ele errava sempre, não entendia as questões, nem as orientações que recebia. E acrescenta: confessou que estava bêbado quando o socou e tinha passagem pela polícia por homicídio.

            Não se trata de culpabilizar a escola por um ato tão vil, mas de chamar a atenção para a parcela de responsabilidade que lhe cabe de discutir suas práticas, especialmente quando estas requerem o envolvimento de terceiros. A tão desejada participação das famílias na escolarização dos estudantes não pode ficar restrita ao cumprimento do estabelecido pela escola, que conta com estruturas familiares nem sempre reais. Atividades como as tarefas de casa devem ser refletidas e discutidas com todos os envolvidos desde a decisão por sua adoção, passando pelo seu planejamento e sua avaliação (tanto das atividades realizadas em casa como do próprio planejamento, que deve ser reformulado sempre que necessário). Caso se decida pela não utilização de deveres de casa, práticas alternativas podem ser discutidas de modo a substituí-los.

Vale destacar, no entanto, que a almejada participação das famílias requer mudanças no modo como costumam ser percebidas no âmbito das escolas. É preciso desfazer “mitos de que as [elas] não participam ou não se mostram interessadas em participar. Talvez sejam os olhares e as ações dos profissionais que ocupam o espaço da escola que colaborem para que esse fenômeno ocorra. Essa visão precisa ser reconstruída (DALBEN e SORDI, 2009, p. 160)

Além de contribuir para evitar que os estudantes sejam alvo de sofrimentos e constrangimentos, as atividades escolares oriundas de reflexões e discussões coletivas reúnem maiores condições de promover aprendizagens, papel social da escola.

Referência:

DALBEN, Adilson; SORDI, Mara Regina Lemes de. Avaliação Institucional: Qual o seu poder? In: SORDI, Maria Regina Lemes de. SOUZA, Eliana da Silva. (Orgs.). A avaliação como instância mediadora da qualidade da escola pública: a rede municipal de educação de Campinas como espaço de aprendizagem.Campinas-SP: Millennium, 2009.

VILLAS BOAS, Benigna Maria de Freitas; SOARES, Enílvia Rocha Morato. Dever de casa e avaliação. Araraquara-SP: Junqueira & Marin, 2013.

 

JC Notícias – 30/06/2021

Brasil melhora acesso à escola, mas ainda precisa superar desigualdade, aponta OCDE

Análise sobre políticas adotadas nas últimas décadas mostra avanço em índices de educação, mas também aponta gargalos que precisam ser superados, como uma maior equidade 

O Brasil avançou em número de matrículas nas escolas e melhorou o nível de escolaridade da população nas últimas décadas, mas ainda precisa vencer desafios por uma educação de qualidade.

Entre eles, está a redução da desigualdade na educação, o que pode ficar ainda mais acentuado com os efeitos da pandemia devido à falta de acesso ao ensino remoto, e o fortalecimento de um Sistema Nacional de Educação, com a definição de papéis claros entre os entes da federação.

Veja o texto na integra: G1

Leia também:

O Estado de S. Paulo – Metade do gasto público com ensino superior no Brasil beneficia alunos mais ricos, diz OCDE

 

As plataformas híbridas na escola e o impacto na juventude

Por Luiz Carlos de Freitas, no blog do Freitas

O entusiasmo das grandes corporações com a introdução das tecnologias na escola – p. ex. ensino hibrido – precisa ser detida. Em sua escalada para manter e ampliar as taxas de lucro, as corporações invadem e mercantilizam agora as próprias relações sociais e entre elas as relações entre professores e estudantes. São milhões de estudantes […]

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Luiz Carlos de Freitas | 28/06/2021 às 11:43 AM | Tags: Plataformas de aprendizagem on line, Reformadores empresariais, Tecnologia de Avaliação Embarcada | Categorias: Estreitamento Curricular, Links para pesquisas, MEC sob Bolsonaro, Pastor Milton no MEC, Privatização, Segregação/exclusão | URL: https://wp.me/p2YYSH-7Io

 

Os desafios do aluno na rede pública no ensino superior

JC Notícias – 28/05/2021

“Parece que os professores universitários não sabem como são as escolas públicas e ainda estão despreparados para o novo público que está tomando conta das universidades”, comenta Vinicius de Andrade, fundador do programa Salvaguarda, em coluna do Deutsche Welle

É inegável que estamos avançando, ainda que não na velocidade ideal, em relação ao aumento da representatividade de alunos oriundos da rede pública no ensino superior, especialmente nas universidades públicas. Sabemos também o quanto o caminho de ingresso deles é árduo e repleto de desafios. Porém, pouco se fala sobre o que acontece quando ingressam na universidade.

Os desafios continuam? Estarão em pé de equidade com seus colegas oriundos da rede privada? Terão suas demandas representadas e consideradas por seus professores?

Infelizmente, o modelo atual de ensino na rede pública não instiga o estudante a ser um agente ativo no processo de aprendizagem. Já na universidade, ou ele é ativo ou haverá uma grande chance de reprovar nas disciplinas. No entanto, a adaptação não é assim tão fácil e, geralmente, leva um tempo para encontrar a forma ideal de estudar. “Nossa, assim que entrei tomei um susto, reprovei em quase 50% das matérias”, diz uma estudante de matemática da Unesp.

Somado a isso, enfrentam outra dificuldade: a expectativa dos professores em relação a assuntos que supõem que todos os discentes já saibam. Essa expectativa foi um grande desafio para Geovanna, estudante da Ufscar, como dito por ela: “Acho que uma dificuldade que tive foi que vi que várias pessoas da minha turma sabiam bastante de matérias do ensino médio e muitas dessas matérias são base para estudar outras coisas e eu costumava ficar sem saber algumas vezes coisas básicas nos exercícios e atividades”.

Leia na íntegra: Deutsche Welle

 

RJ: sancionada “lei da escola sem mordaça”

PorLuiz Carlos de Freitas, no blog do Freitas, em 19/05/2021

O Rio de Janeiro dá um passo importante na luta contra as tentativas de amordaçar as escolas impedindo que professores, estudantes e funcionários expressem suas opiniões: Em seu artigo 1º. Diz: “Todos os professores, estudantes e funcionários das escolas sediadas […]

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Luiz Carlos de Freitas | 19/05/2021 às 7:24 PM | Tags: “Nova” Direita | Categorias: Assuntos gerais | URL: https://wp.me/p2YYSH-7Hf

 

Autonomia do INEP: entrevista com Alexandre Santos

Por Luiz Carlos de Freitas, no blog do Freitas, em 16/05/2021

O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), uma das autarquias mais importantes na avaliação, subsídio e formulação de políticas públicas no Brasil, vem sofrendo pressões diversas que colocam em risco sua autonomia. Recentemente o servidor concursado Alexandre André […]

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Luiz Carlos de Freitas | 16/05/2021 às 7:00 AM | Categorias: MEC sob Bolsonaro, Pastor Milton no MEC | URL: https://wp.me/p2YYSH-7Hc

 

Avaliação como projeto de aprendizagem

Revista Com Censo, Edição 24, volume 8, número 1, março 2021

Avaliação para as aprendizagens

Estudos educacionais do Distrito Federal

Avaliação como projeto de aprendizagem

Entrevista com Cláudia Fernandes

Cláudia Fernandes Graduada em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC- -Rio), em 1985, mestre em Educação (1997) e doutora em Ciências Humanas/Educação (2003) também pela PUC-Rio. Possui pós- -doutorado em Avaliação Educacional pela Universidade Federal Fluminense (UFF), 2014. Atuou como professora da Educação Básica durante 20 anos e, nos últimos 21 anos, tem atuado no Ensino Superior, na Faculdade de Pedagogia. Desde 2004, é professora da Faculdade de Educação e da Pós-Graduação (mestrado e doutorado) no departamento de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). De 2010 a 2013, coordenou o Programa de Pós-Graduação em Educação/ PPGEDU-UNIRIO, atuando como vice-coordenadora ao longo do ano de 2018. Realiza palestras e consultorias para diversas secretarias de educação e instituições educativas no Brasil. Foi consultora do Ministério da Educação em diversos programas, principalmente no Pro-Infantil e na publicação Indagações sobre o Currículo. Realiza pesquisas com ênfase em currículo e avaliação das aprendizagens em contextos escolares, relacionadas, em especial, à implantação dos ciclos nas escolas públicas e sua relação com a avaliação, à política educacional, ao currículo e à formação de professores. Cláudia Fernandes

RCC – Antes de atuar no Ensino Superior, a senhora foi professora durante 20 anos na Educação Básica. Como analisa os avanços das práticas pedagógicas no que diz respeito à avaliação das aprendizagens na escola numa perspectiva formativa?

Cláudia Fernandes – Eu costumo sempre fazer uma análise, que é a seguinte: a escola de Educação Básica, especialmente a que atende educação infantil e ensino fundamental, um pouco menos o ensino médio, fez muitos avanços em relação às suas práticas didático-pedagógicas no que tange ao campo do currículo (decisões sobre o que ensinar, como ensinar e por que ensinar, trazendo uma postura crítica sobre aquilo que se ensina) e avanços também em relação às práticas avaliativas. Eu entendo que avaliação é mais um elemento do currículo. Isso me permite indagar, também, no que diz respeito à avaliação: o que avaliar, por que avaliar, como avaliar e quando avaliar. A gente não avalia tudo, assim como a gente não ensina tudo. Do tempo em que trabalhei nas escolas como professora, assim como coordenadora pedagógica, e observando as escolas que acompanho agora, na universidade, nesses 21 anos realizando pesquisas, especialmente da rede municipal do Rio de Janeiro, posso dizer que as escolas avançaram bastante no que diz respeito às práticas avaliativas numa perspectiva formativa. A universidade avançou menos. A universidade ainda guarda um certo conservadorismo, tanto em relação às questões curriculares e didáticas quanto em relação às práticas avaliativas. A escola fez avanços, sim. Muitas escolas optaram por trabalhar com projetos, optaram também por fazer um acompanhamento contínuo das aprendizagens das crianças, utilizando-se de diferentes instrumentos de avaliação, como os portfólios, por exemplo, o que é algo importante para se pensar uma prática de avaliação mais formativa. E isso ocorre muito menos no Ensino Superior. Por que eu disse, inicialmente, que, no ensino médio, houve menos avanços? Há uma questão muito importante de se destacar: para que práticas de avaliação numa perspectiva formativa ocorram, a forma como a escola organiza seu tempo-espaço no cotidiano precisa ser levada em consideração. No caso da educação infantil e do ensino fundamental I, essa organização é bem mais flexível e é bem mais coerente com a possibilidade de uma prática de avaliação formativa. Já no ensino fundamental II e no ensino médio, a organização (do cotidiano, das aulas, das disciplinas, da carga horária dos professores) cria dificuldades para que se pense numa prática de avaliação mais formativa, porque essa prática demanda formas de acompanhamento mais de perto dos percursos das crianças e dos jovens em relação às suas aprendizagens. Quando não se tem muito tempo com essas crianças e esses jovens, ou seja, quando se tem um tempo mais compartimentado, num espaço também mais compartimentado, isso fica mais difícil mesmo para o professor. No caso do ensino fundamental II e do ensino médio, há vários estudos que mostram que a formação de professores dessas etapas é mais frágil no que tange a questões pedagógicas, didáticas e ao planejamento do tempo e do espaço de atividades. Já, no caso de professores da educação infantil e do ensino fundamental I, verifica-se uma situação meio oposta: temos professores com uma formação melhor nas questões pedagógicas, mas, às vezes, apresentando fragilidades nas questões específicas dos conhecimentos das áreas específicas, e isso traz problemas também. Em todas as duas situações, temos ganhos e perdas. Não é o mundo ideal. O ideal seria que as formações concorressem todas da mesma forma e para um objetivo maior: garantir um cotidiano na sala de aula que fosse mais formador dos estudantes em todas as suas dimensões, o que é a função social da escola. Não só as questões dos conhecimentos específicos, mas também de formação do ponto de vista de atitudes e de posturas frente ao mundo, das relações sociais, da vida, do meio ambiente, do cuidado com o corpo, entre outros. Isso tudo deve ser objeto também de uma prática cotidiana de uma avaliação formativa. Eu tenho utilizado, ultimamente, mais do que “avaliação formativa” a ideia da avaliação para as aprendizagens ou até avaliação com as aprendizagens, para dar ideia de que avaliação é algo que acontece junto com o processo de aprendizagem; avaliação é algo que está acontecendo o tempo todo na sala de aula. Mesmo que nós professores e estudantes não percebamos, ela acontece o tempo todo. É impossível ensinar alguma coisa sem avaliar. A questão que se coloca é como nós damos sentido, como entendemos e percebemos essa avaliação cotidiana. E mais do que isso: como valorizamos essa avaliação cotidiana. Na sociedade, valorizamos muito a avaliação somativa, aquela que demanda um instrumento específico para si, aquela que vem no final de um processo e, o mais importante, aquela que quantifica, que dá uma nota ou um conceito. Isso, no senso comum, é que se entende por avaliação. Essa avaliação cotidiana, que caminha ao lado das aprendizagens, não é valorizada, porque não é entendida como avaliação. A avaliação somativa guarda e reserva ao professor e à escola um poder que a avaliação formativa não proporciona. São questões bastante complexas da escola e que merecem reflexões por parte de professores e professoras. Mas, retomando o início: a escola de Educação Básica fez muito mais avanços em relação às práticas avaliativas na perspectiva da avaliação para as aprendizagens e com as aprendizagens do que o Ensino Superior.

RCC – Quais são os principais desafios que a escola enfrenta para promover práticas de avaliação que, de fato, auxiliem o estudante a aprender cada vez mais, superando iniciativas meramente classificatórias?

Claudia – O primeiro grande desafio é mudar o paradigma, ou seja, mudar a lógica que organiza o conhecimento, o tempo e o espaço escolares. O desafio é pensar a partir de um outro lugar a organização escolar, que é secular e que atravessa a gênese dessa escola do século XIX, dessa Escola Moderna, que perpassa toda organização escolar desde a concepção do que é conhecimento, do que é o tempo e do que é o espaço. Eu entendo que a pandemia agora, com o ensino remoto, nos força a repensar a forma de trabalhar com as noções de tempo e de espaço nos planejamentos, porque são diferentes do tempo-espaço da sala de aula presencial. Não se trata de fazer uma defesa do ensino remoto, muito pelo contrário. Sou uma defensora da escola como um dos lugares, na contemporaneidade, nos quais as novas gerações têm possibilidade de convivência; é o espaço do coletivo, do poder aprender os princípios democráticos, se assim a escola trabalhar. A escola é o lugar para se aprender a respeitar e considerar as diferenças culturais, religiosas, sociais. Aprendizagens fundamentais para a formação cidadã. Entretanto, para, de fato, enfrentarmos essa mudança, os desafios são muitos grandes, porque temos uma sociedade que clama por uma escola com tempos e espaços marcados da forma como eles têm sido á séculos e clama por uma avaliação classificatória e meritocrática. A sociedade entende, por exemplo, que, se não tem prova, não há avaliação. Há muitas máximas no campo da avaliação que permeiam esse imaginário popular e que fazem parte do senso comum, que vai conformando uma certa lógica escolar e uma certa imagem de escola. Esse é um grande desafio, porque essa lógica e esse imaginário também habitam os professores e as professoras. Assim, o nosso grande desafio é poder pensar de um outro lugar, tentar pensar com uma outra lógica que se afaste do senso comum, daquilo por meio do qual secularmente a escola é vista. Um autor que nos ajuda a pensar, por exemplo, numa outra possibilidade de escola é Ángel Diaz Barriga, para quem a nossa velha escola foi moldada pela pedagogia do exame. O exame tem um sentido classificatório que bem serve quando estamos diante de uma situação de concurso, em que temos, por exemplo, dez vagas e quinhentos candidatos. Na sala de aula, entretanto, essa lógica não é coerente, porque, na escola, não queremos selecionar dez estudantes, queremos que todos aprendam. Na escola, a lógica do exame não serve; isso é de um tempo em que a escola era para poucos.

RCC – Muitas escolas ainda compreendem a avaliação como prática a ser realizada apenas em determinados momentos. Quais são as principais características da avaliação como processo, e não somente como evento planejado para acontecer nos fins de bimestres, semestres ou anos letivos, por exemplo?

Claudia – A maioria das escolas ainda trabalha com a avaliação como sendo um produto. É a ideia de que a avaliação está no final: “primeiro a gente faz, depois a gente avalia”. Eu lanço a seguinte questão: por que não avaliar, trabalhar, avaliar, trabalhar, avaliar, num processo contínuo? Para que a avaliação cumpra a sua finalidade, ou seja, para que a avaliação seja para e com as aprendizagens, ela deve acontecer ao longo do processo. Se a avaliação fica para o final, muitas vezes, apenas verificaremos algumas aprendizagens que não foram realizadas. Assim, a avaliação serve apenas para constatar e colocar um carimbo no estudante. É preciso entender que não podemos dizer que o “estudante não sabe”, mas, sim, que ele “ainda não sabe”. Se entendermos a avaliação como um processo, como uma construção, porque a aprendizagem também é um processo de construção, compreenderemos seu caráter de continuidade. Por exemplo: hoje uma criança do segundo ano pode “ainda não saber” realizar um algoritmo da multiplicação, mas é preciso entender que essa criança está num processo de construção e que, daqui a uns três dias, a uma semana ou, quem sabe, daqui a um mês, ela já vai saber de forma diferente. Por isso, é importante ter o registro do processo, e não apenas olhar ao final. Sem saber o processo, é impossível acompanhar, saber o que a criança já sabe e o que ainda não sabe. Quando afirmarmos que o estudante “ainda” não sabe determinado conteúdo, indicamos a potência desse estudante, indicamos a convicção de que ele está em processo de aprendizagem, que ele vai aprender, que ele é capaz. Esse “ainda” tem a ver com a disponibilidade em relação à aprendizagem do estudante, com entendimento de que ele vai aprender: se ele ainda não sabe, é porque virá a saber. Se afirmamos que o estudante “não sabe”, já sentenciamos esse estudante a um lugar de não aprendizagem. E é muito difícil que alguma pessoa ocupe esse lugar da não aprendizagem. Mesmo as pessoas com necessidades educativas especiais, aprendem; aprendem num outro ritmo, num outro tempo, de diferentes formas, mas aprendem. Então, esse “ainda” dá ideia da potência, da possibilidade, do processo. O contrário é a lógica da escola que trabalha com a pedagogia do exame: a escola que não entende que o conhecimento é construído; a escola que se entende como o lugar das verdades absolutas, e não das verdades provisórias. As verdades são provisórias. O conhecimento é construído, é contextualizado e não é neutro. Se entendermos isso, se entendermos que as pessoas aprendem de formas diferentes e em tempos diferentes, compreenderemos que a avaliação não pode ser uma sentença ao final de um processo.

RCC – As práticas pedagógicas envolvem instrumentos e procedimentos de avaliação, como relatórios, questionários, provas, portfólios, registros reflexivos, autoavaliação, entre outros. Que características são fundamentais para que esses e outros instrumentos e procedimentos promovam aprendizagens, e não sirvam unicamente para a atribuição de notas?

Claudia – Essa questão nos aproxima das práticas que envolvem os instrumentos, os procedimentos, os registros, a autoavaliação. Tudo isso é muito importante, mas é preciso diferenciá-los: os instrumentos, a que eu prefiro chamar de “tarefas” ou “exercícios” de avaliação; os procedimentos, que dizem respeito à forma como são utilizados os exercícios e as tarefas, o tempo destinado a eles, a forma como serão realizados (em grupo ou individualmente); e os registros, que se referem às diversas possibilidades de registros do processo de avaliação, seja a partir de relatórios, seja a partir de conceitos ou notas, como geralmente as escolas fazem. A autoavaliação não deve ser compreendida como instrumento de avaliação, porque não o é. A autoavaliação, normalmente e novamente, é entendida como algo que se faz ao final de uma etapa (de um bimestre, de uma semana, de uma aula) em que o estudante tem de falar, na maioria das vezes, de aspectos mais formativos, se ele aprendeu ou não, se ele se envolveu ou não, etc. Às vezes, é solicitado aos estudantes que se atribuam notas… Entretanto, a autoavaliação, da forma como eu venho trabalhando, é um conceito muito importante dentro da avaliação para e com as aprendizagens, porque ela faz parte do processo de um autoconhecimento do estudante em relação ao seu processo de aprendizagem. Então, a autoavaliação não precisa de um momento especial, não precisa, necessariamente, de nada escrito. A autoavaliação se aproxima daquilo que Paulo Freire nos ensina, que é o diálogo, a conversa, a possibilidade de se olhar no olho da criança ou do jovem e perguntar: “Como você fez isso?”, “De que forma você pensou?”, “Por que você escreveu dessa forma?”, “O que você fez para escrever isso dessa forma?”, “O que você leu?”, “O que você refletiu?”, “Você fez sozinho ou fez com alguém?” Ou seja, proporcionar, dentro do planejamento, momentos em que o estudante tem de refletir e pensar sobre o seu processo em determinado momento, sobre aquilo que ele está fazendo. O processo de autoavaliação é contínuo, constante, e isso faz parte da avaliação para e com as aprendizagens. Essa ideia de autoavaliação é importante, porque envolve o estudante no seu processo; colabora para que vá construindo autonomia na medida em que ele pausa para pensar sobre o que sabe, sobre o que ainda não sabe, como fez, por que fez, por que não fez e o que precisa fazer. Todas essas reflexões ajudam o estudante a ter mais autonomia sobre seus próprios processos de aprendizagem. Isso é autoavaliação, um conceito importante dentro da avaliação para e com as aprendizagens. Em relação às tarefas avaliativas ou exercícios, aos procedimentos e aos registros, defendo a ideia de transformar a avaliação em projeto de aprendizagem. Essa é uma ideia muito importante e envolve possibilidades de se incorporar a avaliação ao planejamento cotidiano. Em outras palavras: como se pode fazer um planejamento avaliativo? Muitas vezes, planeja-se uma aula sem pensar num planejamento avaliativo. Normalmente, o que é planejado diz respeito ao conteúdo, às tarefas, aos exercícios, mas seria importante pensar, fazendo parte do planejamento, na tarefa avaliativa. Darei um exemplo de como se pode transformar uma tarefa de avaliação em uma tarefa de aprendizagem. Faço com os meus estudantes universitários a “prova com cola”. O instrumento, ou seja, a tarefa, é a prova. Como são os procedimentos? Os estudantes pensam, inicialmente, que a “prova com cola” é uma prova com consulta, mas não é. Oriento-os a fazerem uma cola e levá-la no dia da prova. A “cola” não pode ser grande, podendo ter, no máximo, o tamanho de uma meia página. Claro! Onde já se viu cola grande?! Pois bem: é dito aos estudantes que a cola será grampeada junto com as folhas da prova em si. O que isso significa? Que, para o estudante fazer a cola, precisa fazer uma síntese; ao fazer a síntese, ele é convidado a estudar, a ler minimamente aquilo que precisa aprender e se dedicar aos estudos para conseguir fazer uma “cola” que será avaliada no sentido de verificar se é ou não uma síntese. Fazer uma síntese não é uma tarefa fácil, pois implica ter se apropriado minimamente de conceitos e ideias centrais ou fundamentais. No dia da prova, o estudante pode, obviamente, consultar a cola feita por ele. Na semana seguinte, as provas são devolvidas com as respectivas colas aos estudantes, sem nenhuma observação nelas. Solicita-se que os estudantes, individualmente, releiam, que vejam se estão satisfeitos, se acrescentariam algo, se trocariam alguma coisa. Em seguida, pede-se a cada estudante que escolha algum colega com quem está acostumado a trabalhar para trocarem suas provas. Cada um lê a prova do outro, fazendo observações, comparações, aprendendo um com o outro. Trata-se, nesse momento, de uma espécie de segunda ou terceira versão da prova. Feito isso, as provas são novamente recolhidas para serem lidas por mim e para receberem anotações e comentários no texto dos estudantes. Esse é um tipo de procedimento que considera o tempo de aprender de cada um e a necessidade que nós temos de nos distanciarmos um pouco daquilo que se escreve para, posteriormente, vermos o que não vemos imediatamente. Esse procedimento também exemplifica como se pode oportunizar ao estudante que ele faça o melhor, pois ele poderá fazer e refazer, produzindo versões melhoradas do seu trabalho. Exemplifica também um planejamento pensado a partir de uma tarefa avaliativa. É importante deixar o estudante fazer o melhor. Parto do princípio de que todos podem aprender, que estão em processo e que aprendem de formas diferentes. Nesse sentido, é uma tarefa de avaliação que concorre para a aprendizagem, pois o que mais interessa são as aprendizagens que os estudantes vão realizar, mais do que o resultado no final da prova. Gostaria de terminar a entrevista dizendo que o grande desafio para professores e professoras é pensar a avaliação como projeto de aprendizagem, e que esse desafio só será empreendido se for coletivamente. O trabalho coletivo, dialogado, se faz premente entre os docentes, mas também com os estudantes. E, por fim, sempre ressalto que a avaliação das aprendizagens dos estudantes precisa ser vista com amorosidade, com empatia, na perspectiva freireana do conceito.

 

SP reage a eventual aprovação do ensino domiciliar

Por Luiz Carlos de Freitas, no blog do Freitas, em 22/04/2021

Prevendo que o Congresso pode liberar o ensino domiciliar, o Estado de São Paulo se antecipou e já estabeleceu, para o Estado, condições para sua efetivação. A principal mensagem é clara: “O sistema de ensino de São Paulo entendeu que era importante dizer o que não será aceito: vai haver supervisão, avaliação, controle. Não é […]

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Luiz Carlos de Freitas | 22/04/2021 às 9:56 AM | Categorias: Homeschooling, MEC sob Bolsonaro, Pastor Milton no MEC | URL: https://wp.me/p2YYSH-7Gi

 

Pós-pandemia: NY propõe reduzir tamanho das turmas

Por Luiz Carlos de Freitas, em 22/04/2021, blog do Freitas

Ao invés de chamar os professores de vagabundos, deputados governistas deveriam seguir os passos da Cidade de Nova York e fazer o seu trabalho. Leonie Haimson mostra como Nova York está se preparando para lidar com o pós-pandemia – depois que o país livrou-se do negacionismo e acelerou o processo de vacinação e, em 100 […]

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Luiz Carlos de Freitas | 22/04/2021 às 10:38 AM | Tags: Resistência | Categorias: Doria no Estado de SP, MEC sob Bolsonaro, Pastor Milton no MEC | URL: https://wp.me/p2YYSH-7Gm

 

É urgente incluir as desigualdades nos indicadores educacionais

JC Notícias – 09/04/2021

O alerta é do professor emérito da UFMG, José Francisco Soares, em artigo publicado na nova edição do Jornal da Ciência que celebra o centenário de nascimento do educador Paulo Freire e traz a Educação como tema principal. A versão em PDF está no ar e pode ser baixada gratuitamente

O Brasil é um país profundamente desigual, inclusive na Educação. O direito à educação se concretiza com a garantia de acesso a uma escola de ensino básico, com a permanência regular e prolongada e, finalmente, com o aprendizado do que é necessário para uma cidadania plena.

O artigo 205 da Constituição diz que é dever do Estado garantir estes resultados para todos, para o quê é essencial dar as condições adequadas de funcionamento para as escolas. Pesquisas acadêmicas, realizadas por vários grupos de universidades brasileiras, inclusive o nosso na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), mostraram resultados discrepantes entre os estudantes de diferentes grupos sociais, e que as condições das escolas que frequentam, também são muito desiguais.

A diferença de desempenho no teste do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) entre os estudantes do primeiro quintil de NSE (Nível Socioeconômico) e os do quinto quintil é equivalente a dois anos de escolarização. Os estudantes de NSE mais baixo, embora nominalmente, por exemplo, no 9º ano, têm o conhecimento típico de estudantes de 7º ano. Outra evidência da desigualdade é dada pela porcentagem de estudantes com trajetórias escolares regulares. Em um estudo recente mostramos que essa porcentagem é 20 pontos maior nos estudantes que se autodeclaram brancos do que entre os que se autodeclaram pretos.

As exclusões e desigualdades são ainda mais contundentes quando se olha cada estudante não por uma, mas por várias de suas características sociais. Ou seja, as políticas públicas para a educação brasileira precisam ser desenhadas considerando, concomitantemente, duas dimensões estruturais: o nível dos indicadores de permanência e aprendizado, e as desigualdades destes indicadores entre diferentes grupos sociais. Paradoxalmente, as desigualdades são ignoradas, no planejamento educacional, feito sob forte influência do Ideb — Índice de Desenvolvimento da Educação. Este indicador não permite a explicitação completa das desigualdades, já que não há como calcular, com os dados divulgados, o seu valor para os diferentes grupos sociais. É possível, entretanto, calcular o Ideb para cada escola de uma rede, e comparar seu valor entre escolas de NSE parecidos, exercício que mostra grandes desigualdades entre essas instituições. Em muitos municípios, há uma clara segmentação socioeconômica entre as escolas que se reflete nos seus respectivos Idebs.

Para superar as desigualdades é preciso, inicialmente, trazê-las explicitamente para o debate, o que exige incluí-las nas sínteses da situação educacional. Diante disso, é importante que o debate educacional brasileiro defina novos indicadores para monitorar a qualidade da educação que incluam, além do nível do aprendizado já utilizado atualmente, as desigualdades entre os estudantes pertencentes a diferentes grupos sociais.

Essa é uma pauta urgente, tendo em vista que, para alocar parte dos recursos do novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), serão usados indicadores de “eficiência” dos sistemas de ensino dos estados e municípios. Se, para isso for usado apenas o atual Ideb – que contabiliza apenas parte das variáveis identificadas como relevantes – as exclusões e desigualdades comentadas acima ganharão incentivo financeiro para permanecerem camuflando um problema que já existe e não é abordado, em nome desta “eficiência”.

Por um lado, é alentador que a lei do novo Fundeb exija a inclusão das desigualdades no novo indicador, possibilitando que, nos próximos anos, a educação brasileira passe a ser monitorada de forma mais adequada. Por outro lado, qualificar e garantir quais as desigualdades que serão consideradas explicitamente pelo novo indicador, é tarefa prioritária e ainda em construção.

A consideração explícita das desigualdades nos indicadores e a redefinição do conceito de “sucesso educacional” nos estados e municípios é um passo importante, necessário e urgente. No entanto, isso não basta. É preciso implementar iniciativas econômicas, sociais e éticas. Na realidade, o Brasil precisa mudar a parte de sua cultura que naturalizou desigualdades e exclusões. E isso é uma tarefa muito difícil, mas possível.

Baixe a nova edição do JC e boa leitura!